Eu nunca levei um tiro na vida. Muito menos na nuca, um tiro que atravessou meu olho e me deixou cego e surdo. Nunca sofri um atentado pelas mãos de pessoas pagas pelos impostos pra nos proteger, mas que virraam juízes de uma lei deturpada pela própria ignorância e ódio. Nunca sofri com o descaso, nem com a invisibilidade. Não sei qual é o som dessa violência e talvez seja exatamente esse ruído incontrolável oferecido pelo Natural Nihilismo.
Se a cabeça não explode de uma vez ou se o corpo não apaga pra sempre, o cérebro talvez fique ouvindo esse tipo de som proposto em “Anistia”, o segundo trabalho do Natural Nihilismo em 2017 (o outro foi “Pseudonym Unknown”). Um trabalho que tenta se inserir e entender a dor das famílias e da sociedade por conta da ação que ficou conhecida como Chacina da Candelária, ocorrida em 23 de julho de 1993.
Há datas que não conseguem ser apagadas da história. Essa é uma delas. Quando os policiais militares e outros milicianos abriram fogo contra as crianças que dormiam na Candelária, no Rio de Janeiro, achavam que estavam fazendo algum tipo de favor à sociedade. De certa forma, fizeram: expuseram a podridão de um sistema que só segrega e que usa os próprios agentes pra reforçar um processo injusto de separação.
Morreram oito pessoas, sendo seis crianças, a mais nova tinha onze anos. Nenhum dos assassinos está preso, apesar das condenações de mais de duzentos anos. Nos comentários das matérias que volta e meia os portais de notícias fazem pra resgatar a memória do acontecido, os aplausos são pros assassinos. Não há ruído mais insuportável do que esse. “Anistia” expressa a falta desse diálogo.
Cada um dos temas leva o nome de um dos mortos e sua duração tem o exato tempo em minutos representando a idade que cada uma das crianças tinha quando foi assassinada.
É um disco cujo o som isolado, cada tema em si, não quer dizer muita coisa. É um memorial. O tema que representa “Paulo José Da Silva” se difere, mas isso também não quer dizer muito – é provável que o ouvinte nem aguente chegar até lá. E não conseguir é justamente o maior recado passado por “Anistia”: ninguém consegue enfrentar uma realidade tão suja e cruel. Ela é lancinante, incômoda, tira nosso cérebro do esquadro. A Chacina da Candelária é só um dos milhares de casos. Os pobres e os negros foram eleitos os indesejados e eles seguem morrendo por omissão ou pelas mãos do Estado.
Se a gente não suja as mãos pra evitar que isso continue acontecendo, tem ao menos que, nem que seja pelas artes, mostrar que ainda somos capazes de nos indignar e que não se pode deixar cair no esquecimento.
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1. Gambazinho
2. Valdevino Miguel De Almeida
3. Paulo José Da Silva
4. Leandro Santos Da Conceição
5. Marcelo Cândido De Jesus
6. Anderson De Oliveira Pereira
7. Paulo Roberto De Oliveira
8. Marcos Antônio Alves Da Silva
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NOTA: 7,0
Lançamento: 12 de outubro de 2017
Duração: 123 minutos e 00 segundos
Selo: FreakAntiMusic Records e HNW
Produção: Jhones Silva