Aos dois minutos do disco eu sabia que estava ouvindo uma coisa muito livre e, precisamente por isso, grotesca a seu modo. Até aí, normal – mas foi o turbilhão de coisas que essa “aberração” proporcionou que alavancou minha relação com “Pseudonym Unknown” pra um nível extremamente pessoal.
A bonita introdução – que é a mais linda de todos os trabalhos que ouvi do Jhones Silva (ele é o Natural Nihilismo, bem como o God Pussy) – não é capaz de subsistir muito nesse ambiente de decomposição e saturação que é “Pseudonym Unknown”. É como se o disco tratasse, sem etiqueta alguma, das coisas que outras trabalhos musicais parecem deixar pra lá. A transformação súbita da parte mais musical pra manipulação grotesca de Jhones impõe uma agressividade que deixa o ouvinte, a priori, acuado em um terreno saturado em que qualquer rota alternativa está oprimida pelo impacto que o Natural Nihilismo empresta a partir de sua percepção de mundo. Esta que exalta uma dificuldade árida que é conviver com acessos fajutos se impondo de diversas forças que tiram sarro das feridas demasiadamente reais.
O procedimento radical, é claro, alimenta esse juízo e faz toda a barreira musical circundar objetivamente temas caros à música de consumo. Porque machuca o ridículo esforço de se adaptar a diversas situações enquanto o verdadeiro terreno, o destituído, é cruel independentemente da transição de personalidades. Sob o tédio mortiço, então, há um terreno que vincula nós a outros, ainda que não ocupado. Por isso o peso pungente perfurando camadas frágeis de aparência – porque a verdade sangra e todos querem evitá-la. E são nesses níveis sensíveis e muitas vezes escondidos que Jhones opera. Ele faz (anti) músicas pra expor as coisas escondidas por tentativas estúpidas de purificação. O som não como sonho ou representação do onírico (como muitos querem), mas com um meio de um protesto mais intrínseco em relação à maneira que temos agido.
O aspecto “violento” é nada menos do que o resultado natural de uma troca “superficial” nos relacionamentos tão frágeis baseados sempre num não-reconhecimento do outro e constantes trocas que desgastam qualquer convívio. Se no minuto inicial do álbum pode ser suposta uma espécie de redenção, toda a obliteração gigantesca que virá a seguir mostrará que nada está totalmente camuflado. Na verdade, o maior soco deste disco – além de sua óbvia retaliação sonora – é comprovar, metodologicamente, que as estruturas são espectros frágeis prontos pra se desestruturar. Seja lá qual for a razão, a tensão do álbum se estabelece durante toda a audição ao ponto de sua impenetrabilidade fixar um tipo de deslumbre que só as coisas árduas podem trazer consigo. Você é arremessado ao limbo em que está destituído pelo excesso da saturação do Natural Nihilismo, se transformando no tema natural (sem trocadilho) pra um movimento de erradicação quase completo. “Pseudonym Unknown” tira da cápsula uma parte obscura e a estende durante um bocado de tempo pra que, esperançosamente, tal parcela não seja esquecida novamente. Momentos como o início da primeira faixa, “Here Is No Hope”, condizem com o seu nome e são levados bem a sério: qualquer corda arremessada pra você subir novamente foi cortada. Só restam músicas “desagradáveis” e você terá que conviver com isso.
O paradoxo entre a abertura e o fim da primeira peça, essa distância imensurável entre dois polos muito contrários, é a situação impossível, uma queda cuja melhor descrição é provavelmente “Pseudonym Unknown”. As canções de Jhones são marcantes porque aludem aos terrenos impróprios em que a controvérsia é um fator substancial. O desgaste contrário a uma perfeição idealizada investiga a fundo, a partir da condição de “ouvir um disco”, o quanto estamos – falsamente – protegidos por alguma violação Maior (Capital, Dogmas, Crença, Fé). É como se o que ancora uma criança em suas fantasias infantis fosse erradicado: resta o elemento da verdade e ele não é nada agradável.
Outro paradoxo: essa própria violação de qualquer espécie de “verdade própria” que nos tenta pra coisas mais “assimiláveis”; músicas entre três e seis minutos, uma corrida no parque, um trabalho de oito horas por dia. Quando até os refúgios das obrigações tornam-se também fingimentos, a impressão que alguém tem do mundo está camuflada por alicerces frágeis. Por mais alto que soe as frequências do Natural Nihilismo, não se pode negar que elas alçam esses espectros sintéticos do dia-a-dia e colocam toda uma forma automata de viver em questão.
Desde que nos formamos como pessoas todo o ambiente ao nosso redor é um imenso conglomerado de construção voltadas ao autodesenvolvimento, enquanto a possibilidade de conexão com Outro é regulada e, em última instância, tem seu acesso velado pelo excesso do “eu”. Porque não apenas isso concretiza uma existência muito frágil, como vela o acesso a tudo o que é fundamentalmente diferente de nossa bolha. Toda essa diferenciação alheia é combustível que mantém a ordem do mundo, já que qualquer desculpa própria é erguida pra escusar-se de alguma responsabilidade. Por mais que se atribua ao conceito de empatia algum tipo de abertura pra outrem, há de se notar que a compreensão emocional de outro não é tão aleatória assim (ao contrário, os objetos de nossa empatia são, normalmente, selecionados e higienizados por um intrincado jogo psicológico). Em algum lugar no meio de todo esse caminho denso e fugidio, quando se trata de lembrar das rotas percorridas pra chegar aqui, o Natural Nihilismo torna menor a ponte entre o “normal” e o “absurdo”, porque, afinal, o absurdo é muito mais real do que as condições desejadas pela música “comum”. Não que eu esteja defendendo qualquer anti-entusiasmo com o mundo, mas acho que a própria energia dedicada pra tais exultações está sendo desperdiçada em simulações de experiências.
Durante a segunda faixa, “Scenes From Homeless People”, o apelo quase sobrenatural de Jhones paradoxalmente cria um realismo deliberadamente confuso que está inalcançável – pelo menos pra mim, eu nunca morei na rua – e que, ainda assim, existe e se faz necessário ser testemunhado. É essa certeza do músico que atribui certa dose de encanto pra “Pseudonym Unknown”.
O tamanho épico das peças fazem jus aos temas abordados e é estranho que em um mundo tão caótico as pessoas queiram estruturas reduzidas e plastificadas enquanto a brutalidade do universo do Outro se faz mais evidente a cada dia. Há uma considerável dose de nebulosidade em toda a audição prioritariamente estática do disco, mas coisas muito impressionantes são erguidas a partir do momento que você coloca seus fones de ouvido, observa a capa e os nomes das músicas e começa a ouvir o álbum.
Evitando cair em imitações simples que apelam pra um reconhecimento sentimentalista e inofensivo, o mergulho do Natural Nihilismo não apenas aborda a Massa Desesperada, mas questiona o ouvinte o quanto este é capaz de se doar pra recuperar algo há muito perdido. Em mais de duas horas e meia de disco, atravessá-lo exige sim um esforço ao qual a maioria das pessoas não está acostumada, mas também é um espaço-tempo próprio que é criado pra enfrentar resoluções há muito esquecidas. Se você não conseguir prosseguir durante a longa duração do disco, ou achar que todas as faixas são iguais e horríveis, eu recomendo ouvir uma peça por dia enquanto repara bem na cidade que te cerca – os muros pichados, as pessoas pedindo esmola, o medo nos olhos de quem caminha sozinho – pra ter uma experiência sensorial do atravessamento que o Jhones propõe. Em suas canções não há a uni dimensão que a repetição sonora sugere, mas vários horrores contemporâneos apresentados de forma bastante crua, ao contrário do embelezamento que cobre a maior parte da produção atual. Não é que falte criatividade pro músico ou algo parecido, mas ele extrai do caos real um som absurdo que corresponde ao mundo experimentado.
É estranho falar sobre tudo isso enquanto ouço um disco mas me pareceria mais estranho não falar sobre nada disso e apenas descrever sonoramente o que se passa aqui: ainda assim, há de se ressaltar como no avanço da audição os ruídos que pareciam dispersos começam a, aparentemente, circular numa rotação própria conjuntamente. As várias canções contam com uma massa que é erguida através da impressão do ouvinte e da própria dispersão, inicial, dos ruídos. É meio óbvio que nenhuma palavra minha e também nenhum disco vai quebrar esse muro invisível que faz parecer que todos do outro lado não existem ou que são meros seres estáticos poluindo a paisagem da sua cidade. Mas também fica claro que a crueza honesta exposta por Jhones pode ser sim uma das formas de quebrar esse imenso invólucro que nos cerca e finge ser forte e imponente quando na verdade é uma frágil construção de autoproteção.
Ainda assim, essas são formas de condensar um inconformismo com o estado das coisas ou uma paranoia transposta pra afirmar a loucura global. As canções fornecem essa evidência – embora seja realmente digno de nota que não precisariam elas fazerem esse “trabalho sujo” se fôssemos mais ativos no que tange à percepção de mundo – de um universo que sempre esteve no abismo e muito próximo do fim. São versões particulares que narram opressões contínuas no formato absurdo que elas são delineadas. São objetos sonoros que caracterizam uma redenção impossível.
O mundo que o Natural Nihilismo testemunha é o Brasil 2017. Fica evidente que elaborações sofisticadas não fazem parte do seu acervo que assimila a realidade e sua constante dureza. É um mundo que mesmo na micropolítica se mostra totalmente despedaçado, de modo que as mãos estendidas por seres agonizantes encostados no muro são classificadas como uma intrusão alheia na sua bolha ambulante e segura. Ao invés de fantasiar essa realidade, o músico a encara de frente, relatando sobre suas constantes pancadas.
Parece, contando tudo isso, que quase qualquer outra forma – que não o caos e a turbulência – são secundários quando se consta um afastamento tão massacrante entre as pessoas. E é admirável que são nesses cantos mais esquecidos que ele encontra a partícula originária que alimenta sua produção. E é por isso que ouvir essas incisões tão forçadas de Jhones consegue construir, pelo menos pra mim, um cenário anárquico que é o pais onde vivemos. Essas canções não buscam gratificação ou algo assim, mas elas espelham a própria dificuldade que seu criador enfrenta e testemunha todos os dias. Considerando que é “apenas barulho”, é uma penca de coisas pra se absorver em um terreno sonoro que a paz simplista não é nem negociável. O que não pode ser dito das porções e porções de músicas que passam desapercebidas diariamente por não contarem com o elemento da degradação e por se recusarem a falar do mundo através de um olhar amplo. E nem precisa acreditar em mim ou no monumento sonoro de Jhones, cheque por si próprio como a maioria das coisas soam.
Pra um artista com a sensibilidade social e psicológica como Jhones, o único retrato possível passa pelo filtro da angústia (eu não consigo imaginar qual seu processo de composição e fica aqui uma admiração por seguir incessantemente um caminho árduo em que, aparentemente, a única espécie de recompensa são tímidos ecos de outrem aqui e acolá). “Pseudonym Unknown” traça uma percepção produtiva de alguém carnalmente embutido na realidade.
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1. Here Is No Hope
2. Scenes From Homeless People
3. Living The Dead Freedom
4. Poverty Is The Worst Violence
5. Endless Oppression
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NOTA: 10,0
Lançamento: 16 de abril de 2017
Duração: 150 minutos e 51 segundos
Selo: Independente
Produção: Jhones Silva