“No ‘Matrafona’, eu estava preocupada com usar a música pra agregar samples, sons, melodias, que compusessem uma espécie de micro-arquivo de uma comunidade LGBT ao longo da história. Samples de drag queens a falar, títulos que remetessem pra símbolos e experiências minhas enquanto rapariga trans, melodias de lira, sons de polícias, ou seja, sons que de alguma maneira eu sentia que compunham uma paisagem sonora do que seria uma identidade LGBT trans-histórica. Neste ‘Amarração’, eu tentei sair de uma procura através da história e do arquivo pra tentar algo através da fantasia. A minha intenção era conseguir criar músicas que fossem, de alguma maneira, mini mundos fantásticos onde a minha dor pudesse existir fora de mim, quase como se a projetasse em mini fantasias de três minutos. Daí que o meu processo de composição tenha partido de samples figurativos como o som de uma espada, o som de água a correr e coisas assim, pra que no conjunto eles formassem um micro-universo onde eu pudesse encerrar uma experiência minha. A procura de linguagem do ‘Matrafona’, que era essencialmente histórica, transformou-se aqui numa procura de um mundo pra mim onde a minha voz ganha espaço e passa a existir da mesma maneira que todos os outros elementos da música. A linguagem deixa de ser o ponto fulcral”.
Odete resumiu com precisão irretocável a evolução do seu primeiro disco, “Matrafona”, de 2018, pra este “Amarração”, lançado em 2019 como (mais um) importante manifesto de pessoas que sofrem pelo o que elas são e representam diante de uma sociedade mergulhada no ódio e na incapacidade de compreensão. Uma pessoa, qualquer pessoa, sofre por amor não correspondido ou rompido, mas no âmbito LGBT esse processo de dor é ainda mais profundo, por ter que driblar as diferenças usuais além do constante preconceito.
A artista sabe o que faz. Sabe o que quer. Sabe como quer comunicar essa dor. Ela parece ter pleno controle da sua criação e do seu processo. Conhece a linguagem e a ferramenta. Manipula ao prazer de suas intenções sons, batidas e ruídos justapostos.
Se em “Matrafona”, ela passava um recado mais direto (“There’s Pain Under My Wig”), aqui ela se envolve em um universo poético-sonoro mais apaziguador, embora não sem intrigar (“Would You Date A Tranny”) e não sem deixar explícita a dor – os títulos não deixam suspeitas: “And Moisturize The Pain”, “It Broke”, “Mom, I’m Not Eating”.
Três versos, segundo ela, definem o disco: “um feitiço de separação / pra matar / tudo aquilo que você significava pra mim”. “Amarração”, a forma folclórica/mística de reativar relacionamentos, é um contraditório – precisar apelar pra forças ocultas ligarem o que o coração mundano não consegue – que sublinha a problemática vivida por esse universo que a sociedade insiste em dar as costas.
Mas Odete, entre batidas repetitivas, sombrias e delirantes, sobrepõe declamações, choros, lamúrias, boas camadas de estranheza, apitos, nuvens, estipula um paralelo com a dupla Telepathe e acaba pintando um universo próprio de tal beleza e conforto, que barreiras são destruídas. A força da arte de aproximar pessoas distintas em pensamentos e ideologias, mentes esvaziadas pela ignorância, consegue captar a dor enfrentada pela artista e mostrá-la ao mundo, inclusive àqueles que não se importam.
No mundo do encantamento artístico, até a dor é bela. O sofrimento purifica e ensina. O que nos amarra é capacidade de compreender a dor do outro como se fosse a nossa. Porque um dia pode ser.
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Lado A
01. Would You Date A Tranny
02. First, It Takes Your Words
03. Be Flawless
04. And Moisturize The Pain
05. Ableton And Videogames
06. It Broke
07. Mom, I’m Not Eating
08. Is It Lo
09. Laser Shoot The Love
Lado B
01. The Sword Of The Tranny
02. First, It Takes Your Words (Bleid Heartbreak Remix)
03. Be With You (Dakoi Remix)
04. First, It Takes Your Words (Diogo Remix)
05. First, It Takes Your Words (Kerox Blocked Remix)
06. It Is Just A Ghost Girl
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NOTA: 8,5
Lançamento: 6 de junho de 2019
Duração: 49 minutos e 02 segundos
Selo: Troublemaker Records e Rotten Fresh
Produção: Odete