RESENHA: PRIMAL SCREAM – MORE LIGHT

ME ENGANA QUE EU GOSTO

Conta a pesquisadora Natércia Rocha, falecida em 2004, em seu “Contos E Lendas De Portugal”, que no século XIX, alguns malandros viajavam pelo interior aplicando o seguinte golpe: diziam-se emissários em curso do vigário da região e que estavam carregando um mala cheia de dinheiro. Pra aliviar o peso e por segurança, o grupo pedia aos moradores da cidade que guardassem a valiosa mala pra seguirem viagem, mas obsequiavam se a população podia, ao menos, dar uma quantia em dinheiro pra completarem viagem. Invariavelmente a população dava a grana e o grupo sumia pra nunca mais voltar. Obviamente, ao abrirem a mala, os enganados se deparavam nada mais do que porcarias e zero de dinheiro.

A historiadora diz que a palavra “vigarista” vem daí, desse “conto do vigário”.

Mas o Brasil também tem sua versão pro “conto do vigário”. Diz-se que tudo começou com a disputa entre os vigários de duas paróquias pela mesma imagem de Nossa Senhora. Um dos vigários teria proposto que amarrassem a santa num burro que estava solto na rua. Então, o animal seria solto entre as duas igrejas. A paróquia que o burro tomasse a direção ficaria com a imagem. O animal foi pra igreja de um deles, que ficou com a imagem, mas depois descobriu-se que na verdade o burro era propriedade do vigário da paróquia vencedora, de modo que o golpe de esperteza acabou associando a palavra “vigário” a qualquer vigarice que se fizesse.

Não me consta que Bobby Gillespie tenha sido um vigário em qualquer momento da sua vida. Mas ele aplicou no décimo disco da carreira do seu Primal Scream, “More Light”, um digno “conto do vigário”.

O golpe que Gillespie e companhia aplicaram é o da sedução, o mesmo que a música pop vem aplicando desde o seu nascimento pra vender álbuns cheios. Funciona assim: compõe-se um disco com um determinado número de músicas, mas só algumas são de fato comercialmente interessantes ou hits em potencial. A pessoa compra o disco achando que as outras terão a mesma qualidade e daí vem a frustração da realidade.

“More Light” é exatamente assim. Começa com “2013”, liberada em primeiro lugar. Uma canção com o Primal Scream na sua melhor forma, com um sax envolvente, um groove saliente, uma melodia grudenta e nove minutos de hipnose dance. Dá pra dizer que uma futura coletânea da banda só se valida se tiver “2013”.

Vídeo oficial de “2013”:

Assim como é obrigada a ter “It’s Alright, It’s Ok”, a música que fecha o disco. A canção é um abuso de deliciosa, com a mesma vibração de “Movin’ On Up”, que abre o clássico “Screamadelica”, de 1991. É uma referência pra lá de elogiosa. Impossível evitar o sacolejo ao ouvi-la. Foi a segunda a ser divulgadas, e por isso ficou fácil decretar: “More Light” será um discaço, compre de olhos fechados.

Bem, não é exatamente isso. De fato, o Primal Scream não fez um disco ruim, mas “More Light” é bem morno. “River Of Pain”, que vem após “2013”, é arrastada, mas é digerível com tempo, e tem lá sua ousadia, cheia de sedução e malemolência, nos últimos dos seus sete minutos.

“Culturicide”, “Hit Void” e “Tenement Kid” são esboços de boa canções e só pegam no tranco, com repetidas audições, se você se dispor a isso, com enorme risco de sumirem da memória logo em seguida. A conta a favor das boas intenções de Gillespie voltam melhor com a empolgante “Invisible City”. “Goodbye Johnny” tem até uma tentativa de grude, de ser envolvente, mas é uma balada que não chega a engatar a terceira marcha. “Elimination Blues” é razoável, com boa vontade, porque vale a intenção de fazer um blues dark e lisérgico – a execução é que frustra.

Veja o vídeo oficial de “Culturecide”, dirigido por Douglas Hart:

O disco volta a se salvar com loucura acelerada de “Relativity”, que deve funcionar bem com umas bolinhas na cabeça e umas luzes estrobo (incluindo a ressaca final, o trecho pé-no-freio, que é o melhor da música); e com “Walking With The Beast”, canção que remete às boas viagens lentas de “Screamadelica”.

A edição de luxo da obra guarda algumas preciosidades, como “Nothing Is Real / Nothing Is Unreal”, “Running Out Of Time” e “Theme From More Light”. Elas elevariam o nível da edição original se lá estivessem.

Com “2013” e “It’s Alright, It’s Ok”, o Primal Scream mostra que tem capacidade pra muito mais. A inspiração de “More Light” está no passado da própria banda, busca luz nas várias fases da discografia, é coisa pra fãs mais ferrenhos, um verdadeiro “me engana que eu gosto”. Se tivesse ficado ao redor de “Screamadelica” e de “XTRMNTR” teria sido menos pior. Mas o problema está nessa concepção. Não seria melhor olha pra frente? Essa auto-reciclagem não engana ninguém.

Vídeo oficial de “It’s Alright, It’s OK”:

NOTA: 6,5
Lançamento: 13 de maio de 2013
Duração: 69 minutos e 03 segundos (versão original)
Duração: 96 minutos e 31 segundos (versão de luxo)
Selo: Ignition Records e 1st International
Produção: David Holmes

Leia mais:

Comentários

comentários

2 comentários

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Esse site utiliza o Akismet para reduzir spam. Aprenda como seus dados de comentários são processados.