RESENHA: RAKTA – FALHA COMUM

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O momento que eu lembro é quando a dissonância passou a ser a regra e um mundo de possibilidades convergiu no único instante. Mais ou menos como Stephen em “Ulisses” sentindo todos os fragmentos de uma narrativa que não era narrativa desintegrando-se no momento que se apresenta como extensão lógica de um mundo perverso, um mundo castigado pelo descaso dos deuses e dos seres humanos, restando ao artista recolher seus infinitos cacos e transmutar este caos em uma forma que se manifesta por sua obra.

Sim, o momento que eu lembro é quando esse uno indivisível – que dizem ser deus, ou o universo, ou o cosmo – foi quebrado por todos os fragmentos, por frequências repetitivas cujos intervalos eram rasgados por sintetizadores hipnotizantes, por cantos ocultistas e xamânicos, uma magia projetada num mundo frio e isolado, em que receber e produzir são a mesma coisa, uma mesma troca constante que oscila ante o vazio da morte quando todos os significados são extintos e voltam à sua forma original: um eco de destruição e devastação que é o toque criativo e transmuta toda a matéria em nada pra que possa, novamente, reverter-se a uma lacuna criativa, uma antecâmara dos acontecimentos onde a saudade dos cachorros latindo, do sol seco e dos transeuntes cansados reinstala o universo subjetivo.

O momento que eu lembro não é um passado isolado, mas uma conversão daquela experiência em uma sensação que se difunde no presente. Ocorrendo no tempo atual, o passado surge como um espaço compartilhado, como apenas um cômodo diferente do qual se está. Como a música da Rakta é uma espiral que converge simultaneamente pra espaços anteriormente habitados – fazendo deles uma morada temporária, em que reclusão e presença se fundem numa linha inconstante -, minhas memórias surgem como potências ativas pra criar um universo que transpõe o objetivo; com emoções, afetos e ausências.

A música da Rakta é uma espécie de autoconsumo batizada numa complexa relação interior e como esta emana no mundo. Ela é uma devoção do tempo presente não como resultado de algum produto, mas uma busca de enraizamento no instante que imediatamente escapa. Essa tentativa de captura, de busca por uma afirmação no “mundo que está prestes a acabar… entrando em colapso”, que vai orientar entradas sonoras cada vez mais radicais e inseguras. Porque, como escreveu Cecília Meireles, “tudo o que abarco / se faz presente”, a banda Rakta perpetua seus entrecruzamentos com uma música lotada de repetições que se variam à medida que se projetam.

Mas, com muita frequência, a música que se projeta é não uma abolição entre formas distintas de vivenciar o tempo, mas um prolongamento que se insinua à medida que as reagem contra elas mesmas, criando uma espécie de autossabotagem da linearidade na música que se instala, pra indicar uma espiral cuja trajetória e marco inicial é também seu horizonte mais longínquo.

Ainda assim, se todo instante se apresenta como presente, cabe à articulação – entre ruptura e linearidade – a construção de uma presença frágil o suficiente pra ser percebida sensorialmente, como um cosmos de locomoções que instaura um tempo de audição que é, também, um espaço. É nessa dissolução da distância que está o principal triunfo da música, fazendo com que sons abstratos dissolvam o ouvinte na suspensão imediata da descrença.

Música é um presente, uma forma de instaurar um tempo como presença que se cria num horizonte cronologicamente dissolvido. Ceder si mesmo a uma construção conjunta de sentidos, em que o conceito de “si mesmo” possa ser ultrapassado pra um compartilhamento. Criar música é também moldar a memória que são os sons sensíveis e restabelecer sensações a partir de harmonias. E se sentimentos são complicados, não seriam registros óbvios que fielmente os trariam à tona. Arremessar esses sons em uma massa compacta é abrir mão da subjetividade, representação e performance puras pra acenar uma construção conjunta de significados, nascendo espelhos que não são retratos fidedignos de coisa alguma, mas sim um movimento de transe contínuo que pode erradicar o ouvinte da passividade e do afeto anteriormente construídos em prol dum reconhecimento do espaço esquecido.

Ouvir a Rakta se distanciar de uma construção convencional é estar no fluxo do presente que se descortina e se desdobra em diversas reentrâncias com acessos de tudo o que se está vivendo no momento; é capturar o presente enquanto constantemente ele evade em outras memórias, lembranças, construções e reconstruções.

“Correspondência / do paraíso / da nossa ausência / desconhecida …”, como escreve Cecília Meireles. “…Choramos esse mistério, / esse esquema sobre-humano, / a força, o jogo, o acidente da indizível conjunção / que ordena vidas e mundos / em pólos inexoráveis de ruína e de exaltação…”.

Pra ouvir o disco, clique aqui.

NOTA: 8,0
Lançamento: 1º de abril de 2019
Duração: 35 minutos e 36 segundos
Selo: Nada Nada Discos, Dama da Noite Discos, La Vida Es Un Mus e Iron Lung Records
Produção: Fernando Sanches e Rakta

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