RESENHA: RUIDO/MM – RASURA

INSPIRAÇÃO NUMA FOLHA EM BRANCO

“Numa folha qualquer eu desenho um sol amarelo
E com cinco ou seis retas é fácil fazer um castelo
Corro o lápis em torno da mão e me dou uma luva
E se faço chover, com dois riscos tenho um guarda-chuva
Se um pinguinho de tinta cai num pedacinho azul do papel
Num instante imagino uma linda gaivota a voar no céu”

Todo mundo lembra de “Aquarela”, música que Toquinho lançou em 1983 e foi um dos maiores sucessos da música feita no Brasil em todos os tempos. Eu tinha onze anos. O vídeo da música, que era na verdade um comercial de televisão, pelo menos o vídeo que ficou no imaginário popular, mostrava o óbvio, o desenho, a criança tentando expressar uma arte – no comercial de tevê, era o próprio lápis, o produto a ser vendido.

Eu tentei desenhar. Caí no golpe publicitário e tentei desenhar. Fui iludido de que bastava aqueles lápis e uma bela música pra imaginação ganhar vida no mundo real. Pobre moleque. Hoje, garotos de onze anos pensam em coisas mais adultas, bem menos pueris do que isso. Jamais cairiam nessa. Eu tentava desenhar e nem o sol eu conseguia fazer. Rasga, amassa, joga fora o papel. Frustração.

Minha carreira de desenhista, pintor ou artista plástico acabava ali, mas mesmo assim nutri certo carinho pela música, talvez como inveja, talvez como esperança de quem sabe um dia…

A lição que aprendi parece mais boba ainda: você pode tentar, quebrar a cara e começar de novo. Basta jogar aquele erro fora e tentar fazer diferente. Foi assim que fiz por muito tempo, nas trocentas vezes que quebrei a cara na vida (a gente quebra a cara mais vezes do que acerta, de modo que é uma lição valiosa).

Não foi à toa que pensei nisso quando ouvi “Rasura”, o quarto disco do ruido/mm (clique aqui pra ouvir e baixar), grupo de Curitiba que desde o disco anterior, “Introdução À Cortina Do Sótão”, de 2011, me pegou na veia.

Mais do que pelo próprio título, a rasura a que me refiro é o ato de tentativa-e-erro pra aprimorar o que você acredita ter como talento e pra levar a vida com menos feridas possível. Lembra da frase “mais suor do que inspiração”? Pois é isso.

A vida é isso, mais esforço e dedicação do que talento e inspiração. “Rasura” me pareceu assim.

Era um disco que já vinha meio colado na minha memória, desde fevereiro, quando publiquei a primeira entrevista sobre o disco, quando nem título tinha ainda. André Ramiro, guitarrista da banda, contava-me sobre o processo de captação de grana pra fazer o disco. Patrocínio de um banco estatal. Coisa séria. O dinheiro público trazia uma pressão maior, de não poder errar, tinha que ser o melhor disco que o sexteto pudesse fazer.

Não dava pra ficar eternamente rasgando folhas de papel por conta de um desenho que lhe jogava na cara uma falta de talento ou inspiração. Diante do sexteto, existiam os prazos impostos pelo projeto agora estatal. Pelo menos, como comprovam os três discos anteriores, a banda tem talento. Teria também inspiração?

“Rasura”, o disco, mostra que sim. Suas oito músicas atestam isso, apesar das dificuldades, inclusive geográficas: Ramiro mora no Rio de Janeiro e os outros integrantes em Curitiba.

O que o trabalho representa, num outro nível de discussão, é que a ruído/mm rasgou a etiqueta que as pessoas costumavam enxergá-la: “uma banda de post-rock“. “Rasura” mostra que a ruído/mm não é só isso.

Quer dizer, há muito do estilo nesse trabalho, como em “Eletroestática”, “Transibéria” (que lembra algum sublime Sigur Rós) e “Filete”: aqueles climões todos, as guitarras envolvendo, as músicas crescendo, atingindo o ápice e descendo de novo… Mas não parece ter custado nada à banda tentar outros terrenos.

“Filete” tem um início pop, por assim dizer. Oitentista. A guitarra aparece rasgando de leve sobre uma batida. Quando a bateria entra, percebe-se um rife pra sacolejar, não só pra viajar. O melhor rife do disco. O corpo acompanha. Deixe acompanhar. Não há ruídos incômodos ou aparentes, salvo uma guitarra remoendo-se ali no meio, num solo dispensável. “Penhascos, Desfiladeiros E Outros Sonhos De Fuga” também sofre com esse deslize. É uma canção bonita, uma balada climática, mas depende muito do clima do ouvinte. E não precisava de demonstrações de técnica.

Mas é deslize pouco diante de um enorme acerto como “Cromaqui”, uma das grandes músicas de 2014, embora curta: é direta, completa, ruidosa, vibrante, acelerada, básica.

Mas está em “Requiem For A Western Manga” a grande chave de “Rasura”. É onde a ruido/mm aventura-se com mais afinco. É uma trilha sonora pra faroeste, pra filme de samurai, pra Sergio Leone, pra Kurosawa. Parece uma brincadeira, a banda experimentando. Aqui deu certo, diante da folha em branco que é o desconhecido. É a diferença de quem tem talento e inspiração.

“Rasura” resume-se assim. Se você não tem nada a perder, e possui talento e vontade pra isso, por que não arriscar? A ruído/mm, promessa feita a si mesma, diante da grana pública captada, tinha o intento de fazer o melhor disco possível. Quem senão a própria banda pra julgar isso? Sem o rabo realmente preso, sem um grande público a frustrar, por que não tentar?

Aventurar-se é o melhor jeito de aprender.

NOTA: 8,5
Lançamento: 27 de setembro de 2014
Duração: 49 minutos e 55 segundos
Selo: Sinewave
Produção: Rafael Panke

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