RESENHA: SENTIDOR – AM_PAR_SIS

Naturalmente, trabalhar com a obra de Tom Jobim requer mais do que técnica – requer também uma percepção ampla (além do sentido estritamente musical) de como reelaborar sua cosmogonia. Principalmente na implantação que o Sentidor, alter-ego de João Carvalho, quer submeter tal reestruturação: não há um paradigma de como interagir com Tom Jobim em representações esparsas. Deste ponto, do preciso ponto entre uma interação significante pra uma elaboração de multiplicidades (lembre-se que nos trabalhos fora da El Toro Fuerte, João Carvalho segue uma fragmentação esquizofrênica do que é atribuído como realidade), é criada o reflexo deslumbrado com as possibilidades. Esse é o caso de um reconhecimento meta-acadêmico da obra de Jobim, em que o Sentidor se despe de todas postulações acerca da obra pra investigar as possibilidades legadas pelo mestre.

A razão pra este tipo de “interpretação esquizofrênica da bossa nova” é porque, além da grande sensibilidade de Sentidor, a criação é um fruto ultramoderno do teste do tempo enfrentado por Jobim – o que resta no diálogo entre antigo e contemporâneo é a veia inventiva e só ela, e somente só, pode ser catalisada pelos instrumentos produtivos.

“Am_Par_Sis”, um anagrama pra “Passarim” (disco lançado por Tom Jobim em 1987), é como uma desconstrução da obra-mãe sem o desrespeito do descarte puro e simples. Por outra, não há descarte. Há reflexão e correlação – a obra foi criada exclusivamente com pedaços tirados de “Passarim”. Sentidor relê não só a sua obra preferida do autor, mas também o Rio de Janeiro que inspirou Jobim. Apresenta aqui o futuro imaginário de uma cidade arrasada pelas convulsões político-sociais atuais.

Se Jobim, morto em 1994, se curvava à apreciação das massas (colocando músicas de “Passarim” na abertura de obras da Rede Globo), Sentidor o reintegra à percepção primária de artista à margem, lutando pra ser ouvido, o que no caso de Jobim não foi regra. Esse outro Rio de Janeiro daria qual impacto à obra de Tom?

A relação de tempo, que ultrapassa o desgaste da idade, é a relação do espanto e do assombroso: este é o ponto fundamental em que as semelhanças deixam de ser práticas pra entrarem no campo da linguagem. “Am_Par_Sis” é a extrapolação dos assombros delineados por Jobim. É como percorrer um outro caminho e ter o mesmo nível de excitação pelo desconhecido por outros objetos. Desta maneira, o valor de “Passarim” é originalmente reorganizado de modo que a preocupação entre “ser” e “natureza” é estruturada em segmentos sonoros descontínuos, manipulados e eletrônicos. Por meio destes, é valorizada a correlação ecossistêmica, a sobreposição de vozes e barulhos em uma conturbação contínua.

É, então, um outro disco.

Ouça na íntegra:

Se alguém conseguisse clarificar tais recepções e filtrasse apenas sons evidentes e cristalinos, estaria mentido. Em sua interpretação do Rio De Janeiro, Sentidor não tenta decodificar elementos culturais, mas sim aderir suas complexidades e segmentações, de modo a utilizá-los pra compor. Ele também recompõe, através dum relato muito particular, um terreno em que as divisões hierárquicas não fazem sentido algum. Afinal, as vozes de um ressoam no mesmo volume do outro. Porque do discurso totalitário apenas nascem sons domesticados. A relação física é parte importante do processo de composição (ainda que mais de 90% de nossa produção musical insista em representações domesticadas) e é pela multiplicidade disparada que Sentidor afirma a potência criativa/corrosiva do Rio De Janeiro.

O tipo de música que eu apoio não é de maneira alguma objetiva ou clarificada pelo excesso de zelo. O que não se opõe a cortes límpidos – a faixa “Oceano” carrega tanta tristeza e beleza que dilui elementos dolorosos e deixa evidente um ambiente desgastado, que insiste em sua própria estrutura pra não deixar corroer o pouco restante. Não é sobre o mundo, é sobre um discurso assombrado pela dimensão histórica e fascinado pela opressão material. É a música afirmada enquanto manifesto de violação da privacidade do ente perdido na problemática com o mundo: se visualiza crianças correndo descalças, uma longa avenida lotada de pichações, assaltantes, mendigos, pessoas saindo do trabalho. Toda esta expressão do “fora” (o mundo além de si) em um atrito assombroso com o “dentro” (o mundo que eu vejo). Muito longe da redução (ou ampliação) da cidade, o que Sentidor faz é estabelecer um elo onipresente entre as forças que atuam e as forças históricas. Como tal, é meramente na representação deste caos que pode-se evidenciar todas estas ricas multiplicidades.

O rancor que a música independente contemporânea tem com a produção de “clássicos intocáveis”, como é o caso de Tom Jobim, é destruído por Sentidor em prol da construção dum futuro pernicioso ameaçado pela confusão cultural – que só representa a superfície de um oceano de problemas investigados por Sentidor. Tudo o que nós sabemos, por enquanto, é a vertigem dum declínio que já aconteceu, sabiamente diagnosticado no disco.

O que é dito aqui é a exteriorização das possibilidades musicais que só teria origem e prosseguimento no Brasil, de modo a encarar o contemporâneo como um tempo que media, cada vez mais, a representação dum passado que infelizmente caí num esquecimento e se torna produto de micronicho, quando na verdade Jobim sempre abraçou nosso complexo universo. A música de Sentidor investiga nossa destituição cultural e interpreta o futuro como um ultrapresente representativo de imagens borradas.

01. Pedreira (Quarry)
02. Ruínas (Ruins)
03. Am_Par_Sis
04. Passarim
05. Incêndio (Fire)
06. Erva (Herb)
07. Oceano
08. Caminho Do Pixo (Pixo’s Way)
09. Caminho Do Pixo Part 2 / Ritual
10. Ritual Part 2 / Praia (Beach)
11. O Pássaro Canta Parecido Com A Música Que Fizemos (The Bird Sings Like The Songs We Made)

NOTA: 8,5
Lançamento: 24 de março de 2017
Duração: 42 minutos e 13 segundos
Selo: Sounds And Colours
Produção: João Carvalho

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