A música muda ou mudamos nós? Qualquer que seja a resposta, as duas variáveis ainda são importantes, mas nós estamos no centro do negócio. É com a gente que a gente precisa se entender quando algo não cai bem. Há trinta anos, eu ia ao famoso Espaço Retrô, na Santa Cecília, e estava pouco me fodendo com as consequências de voltar pra casa tipo seis da manhã. Morar com os pais e ter vários privilégios ajuda um bocado na consciência do moleque pós-púber. E o corpo ajudava naquela época, tudo tinindo, novinho, dos ouvidos ao fígado.
Era bom esbarrar em um João Gordo chapado, que não aceitava desculpas e ficava determinado a te dar uns tabefes, ao mesmo tempo em que a pista apresentava algumas peculiaridades musicais, do Ministry ao Pin Ups, do Einstürzende Neubauten ao MC5. As novidades estavam nas mãos dos DJs, enquanto hoje… bem, hoje qualquer um tem acesso ao que quiser, basta procurar e se aventurar.
Mas esses maravilhosos tempos atuais demoraram a chegar. Meu corpo já não aguenta e as contas precisam ser pagas ou nem corpo amanhã haverá. Então, enquanto a noite não se estende tanto e o fígado já dá sinais problemáticos, sigo me aventurando. Teria sido ótimo ter as ferramentas de hoje nas mãos quando tinha lá meus vinte e poucos anos.
Ouvir esse “New Confusion”, décimo quinto disco do Shit And Shine (aliás, qualquer um do Shit And Shine), em uma pista de dança deve dar um barato acima de qualquer suspeita legal. “Você está com raiva ou irritado?”, pergunta na faixa de abertura, “Annoyed”, uma boa barulheira quase-industrial, pra subir o volume. O disco já vale por ela, porque o resto é um experimento só, com Craig Clouse pegando elementos de jazz, eletrônica, dub e industrial pra mais viajar do que dançar. “Shipped” é um bom exemplo disso.
“Se o universo paralelo de Shit & Shine existe pra alguma coisa, é pra mapear novas fronteiras do errado e justo além de suas expectativas mais loucas”, resume a descrição do disco. Esse universo paralelo deveria ser hoje meu mundo.
NOTA: 7,0
Lançamento: 28 de outubro de 2022
Duração: 40 minutos e 53 segundos
Selo: Rocket Recordings
Produção: Craig Clouse
Enquanto isso, a perversão propriamente dita acontece em outro disco que também chegou tarde demais pra mim: “Man With The Magic Soap”, do Persher.
Antes de qualquer coisa, vale dizer que Persher é o novo projeto dos produtores Arthur Cayzer (conhecido como Pariah) e Jamie Roberts (como Blawan), que assinam como Karenn. Os caras fazem música pra pista de dança mesmo, só que aqui falaram um sonoro foda-se e esticaram a corda. Ao contrário de “New Confusion”, aqui a viagem é massacrante, pancadaria total.
Con distorção pra todo lado, o disco vomita letras inteligíveis enquanto o corpo é alvejado por todo tipo de notas cortantes, angustiantes, inquietantes e desagradáveis.
A faixa-título não deixa dúvidas da pista que o ouvinte tá se metendo. Mas “Calf” dá uma trégua passageira, pra “Ten Tiny Teeth” sentar a marreta e o serrote de novo.
“‘Man With The Magic Soap’ é um álbum oblíquo, até mesmo difícil – certamente no contexto desses dois produtores e seu público principal, e também o tipo de música que eles estão saqueando aqui, e o público tradicional pra isso”, diz o texto da Quietus. “Jamie Roberts, que já usou alguns nomes de produção, mas é mais conhecido como Blawan, e Arthur Cayzer, que é conhecido como Pariah por seus lançamentos solo, são amplamente respeitados no meio club music do Reino Unido. As produções da dupla e os conjuntos de hardware ao vivo os estabeleceram como esteios do techno europeu – não são opções fáceis de agradar ao público de forma alguma, mas repletos de poderosos ritmos violentos e espuma ácida”.
Persher não deve de forma alguma ser visto como Karenn sob um novo nome, longe disso. Aqui, eles experimentam ao extremo, com guitarras e baterias passando por processamento digital pesado. Com luzes estrobo, o estrago pode ser profundo na mente. Com algumas substâncias, se potencializa. Com a idade certa, é diversão garantida.
Mas se o tempo não volta e não há mágica pra isso, resta o deleite de ver duas personalidades subverterem seu mundo já pacificado pra agradar a si mesmas.
A manipulação é um exercício e então a música muda. O tempo é que é inexorável. Ainda que todos sobrevivam, ninguém mais será o mesmo.
NOTA: 9,0
Lançamento: 21 de outubro de 2022
Duração: 26 minutos e 06 segundos
Selo: Thrill Jockey
Produção: Arthur Cayzer e Jamie Roberts