RESENHA: SLOWDIVE – SLOWDIVE

Comecei a gostar de música no finalzinho da ditadura militar, quando Figueiredo já passava a bola pra José Sarney (quase Maluf – ufa! -, quase Tancredo, morto antes de assumir). Vi tantas trocas de moeda, de cruzeiro pra cruzado, pra cruzado novo, pra cruzeiro real, pra URV, pra real, que é difícil saber a ordem, quantas foram e quantos zeros foram cortados. Vi inflação de verdade (hoje, qualquer dez por cento é um arranca-rabo, mas naquela época, oitenta por cento ao mês era algo até corriqueiro). Vi o celular nascer. Vi a Internet engatinhar, os sites toscos daquela época. Namorei pelo IRQ. Vi o GOLPE do Collor ao vivo, ao lado de um dos meus grandes ídolos, o cartunista Angeli.

Vi o Nirvana surgir, o REM, o primeiro show da Siouxsie And The Banshees no Brasil e do The Cure também, lá em 1986 e 1987. Vi a Legião Urbana estourar, Titãs, Paralamas do Sucesso lançar o clássico e irretocável “Selvagem”. Tinha o “Cassino do Chacrinha”, o “Globo de Ouro”, o “Clip Clip”, o “Som Pop” (com Kid Vinil), o “Perdidos Na Noite”, com o Faustão, na Bandeirantes, e o “Matéria Prima”, com Serginho Groisman, na TV Cultura de São Paulo. Aproveitei o auge da Fluminense FM e o boom da 89FM, da 97FM e da Brasil 2000. Comprei a Bizz número zero e a quase todas desde então. Era como a gente se informava sobre música.

Não, aqueles tempos não eram melhores do que agora. A gente se acostuma a pensar que “na nossa época era melhor”, mas o que temos mesmo é uma saudade feroz da juventude, quando nossa única preocupação era justamente viver, ser jovem, ouvir música, namorar, beber e fazer umas besteiras por aí.

Agora, a gente acha que é pior, porque isso foi trocado por responsabilidades como pagar contas, criar filhos, trabalhar e sustentar emocionalmente relacionamentos que quase sempre naufragam.

Mas hoje, pra quem é jovem, é melhor pra fazer todas as bobagens que eu fazia naquela época. Pelo menos pra conhecer música, debater sobre e ver shows dos artistas preferidos, não há dúvidas. Por isso, não caio na tentação de confrontar épocas. Cada uma é o que é. A minha foi aquela e tento fazer com que a de agora seja tão boa quanto aquela, a seu jeito, com suas mudanças e responsabilidades.

Num momento da música em que meus artistas preferidos resolveram revolver no caixão e ressuscitar, adicionando obras novas às suas discografias, há um choque: eles também envelheceram, como eu e como o mundo. Se tudo mudou, por que a música deles feita agora seria tão relevante quanto era vinte, vinte e cinco anos atrás?

Aconteceu com o My Bloody Valentine, lançando um disco nada mais do que razoável em 2013, o “MBV” (leia crítica aqui); aconteceu com o Jesus & Mary Chain, com um disco divertido em 2017, o “Damage And Joy” (leia aqui); vale também pro Ride, com “Weather Diaries”, também de 2017; vem rolando com frequência com o New Order, com seus discos novos, embora o mais recente, “Music Complete”, seja bem interessante (leia aqui); mas nenhum deles voltou arrebatador, ficando na casinha do saudosismo revigorado.

A culpa, é claro, não é da banda somente, que tá lá fazendo seu trabalho, ganhando seu dinheiro honesto. A culpa pode ser atribuída ao peso da idade dos ouvidos que recebem tais obras. Eles também envelheceram vinte, vinte e cinco anos. Nada mais é como antigamente: os desejos, as angústias, os sonhos, as frustrações, os tropeços e as conquistas. Tudo muda.

Entretanto, há exceções. É aquela velha história: pra confirmar a regra, há exceções. Uma delas é o Slowdive. Vinte e dois anos depois de “Pygmalion”, de 1995, o Slowdive vem com “Slowdive”, seu quarto disco (clique aqui pra detalhes). E vem como se nada tivesse acontecido nessas duas décadas, como se eles e nós não tivéssemos envelhecido, como se o mundo tivesse parado e pudéssemos riscar da existência toda e qualquer experiência entre esses dois pontos temporais.

Congelados no tempo e na capacidade de encantar, o quinteto comandado por Neil Halstead e Rachel Goswell faz um disco ainda melhor do que os outros três.

Não há um pingo de saudosismo nisso. É uma experiência real. As batidas flutuantes de “Slomo”, que abre o trabalho, com as guitarras envolventes e o baixo hipnótico, estão tranquilas com relação a qualquer possibilidade de inventário criativo. Se não há “renovação”, há lapidação, aperfeiçoamento, e o deslumbramento que surge do acerto das intenções.

“Star Roving” e a belíssima “Sugar For The Pill” são tão contundentes quanto quaisquer canções (hoje consideradas clássicas) dos discos anteriores e desejadas nas apresentações ao vivo e nos sonhos de adolescência solitária dos anos 1990. “Everyone Knows” acrescenta camadas chiadas de guitarra sem perder a classe. E “Falling Ashes” apresenta um canto diferente.

O que o Slowdive fez em “Slowdive” foi reverter expectativas que essas voltas forçam: é o mesmo shoegaze/dreampop de antes, a mesma delicadeza, a banda tem nome e uma base de fãs que amaria qualquer coisa que fosse produzida, sem o menor senso crítico. Há uma certa segurança e zona de conforto. Então por que soa como tão revigorado e sublime?

Arrisco a dizer que é justamente porque o Slowdive foge do saudosismo barato, mesmo que soe exatamente como antes. Essa é a música que eles gostam de fazer e não tentam parecer mais jovens do que são (ou eram maduros demais já naquela época – hoje estão todos na casa dos 45, 46 anos). Não são como tiozinhos de cabelos brancos e rugas empunhando guitarras e fazendo cara de mau.

O que acontece aqui é uma comunhão temporal: a música os rejuvenesce na alma. Quando isso acontece, não é preciso posar, basta sentir. E curtir.

NOTA: 9,0
Lançamento: 5 de maio de 2017
Duração: 45 minutos e 56 segundos
Selo: Dead Oceans
Produção: Neil Halstead

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