O QUE DIFERENCIA OS MENINOS DOS HOMENS
Há músicas experimentais e músicas experimentais. É preciso dividir o que é bom e o que é ruim. O mesmo vale, claro, pra qualquer tipo de música, como jazz, inclusive o jazz livre, ou free jazz, mas no caso do experimental, por ser música “fora do padrão”, é mais fácil se deparar com algum embuste.
Vale a observação acima por conta do que se ouve nesse terceiro disco do Sobre A Máquina, auto-intitulado. Há nele experimentação, há jazz, free jazz, samba, eletrônico, mas os rótulos não importam. O que vale é saber separar o que é ousado do que não é, o que “parece ser” do que “efetivamente é”. Porque é disso que se trata “Sobre A Máquina”, o disco.
Quem gostou do “Areia”, discaço anterior, poderá se surpreender aqui. Não que a banda, agora um quarteto, com a adição oficial do saxofonista russo Alexander Zhemchuzhnikov, tenha recorrido ao experimentalismo extremo, mas há nesse disco uma diferenciação absurda com os anteriores. A começar pelo formato, oito faixas, mais de uma hora de duração. Mas principalmente pelo uso dos silêncios.
Há muito silêncio no disco. O silêncio que pontua os esporros, os improvisos, os loopings, as sequências de Zhemchuzhnikov. Como o mestre John Cage havia ensinado, são os silêncios que destacam os sons incidentais ou os improvisos ou os barulhos. O Sobre A Máquina percebeu isso e trabalhou a lógica a seu favor.
Eis que temos logo na abertura, com “Dia”, uma série de ruídos, experimentações e passagens por jazz livre, como uma prova de fogo pro ouvinte. Às vezes, os instrumentos concorrem, outras vezes ouvimos uma batida a la samba – mas que a banda dirá que não é samba – outras vezes uma guitarra processada suplicante. Mas há muito silêncio no recheio.
Quando chega “Oito”, a faixa mais acessível do disco, o ouvinte tende a achar que compreendeu tudo – é a mais próxima a tudo que a banda mostrou no disco anterior. Porém, ela precisa acabar pra que se tenha a noção que esse disco, enfim, diferencia os meninos dos homens.
Mesmo em tom de gracejo, é uma verdade. “Dentro”, cheia de gravações de campo, em fita cassete, captadas em trajetos de ônibus e metrô e processadas em computador, com adição de sax, guitarra e baixo, temos o que se pode chamar de jazz livre intenso. É mais uma vez a história da separação. “Dentro” está mais pra um exercício jazzístico que caberia num filme de Otto Preminger, cheio de tensão, do que num filme alegre de Woody Allen.
Ouça o disco na íntegra:
“Corredor” é o que a banda chama de “música eletrônica humana”, uma obra experimental que trabalha menos com o silêncio e mais com a provocação. Embora pesada, parece uma introdução à sombria “Vão” (Orson Welles teria adorado usar o início da canção em seu “Guerra Dos Mundos”). A banda usa ventiladores e grades, com microfones captando o sons do contato e sendo processados depois. O sax junta tudo. “Vão” é pesada, mas curiosamente, é uma das que melhor trabalha o silêncio antes do esporro. E há um baita esporro no final – é bom estar preparado.
Se seus ouvidos ainda estiverem em bom estado, começa a graciosa “Pulso”, com seus samplers engraçados. É o tipo de piada que ouvida várias vezes causa ainda mais graça. O sistema de colagens funciona perfeitamente como descanso. Porque na sequência tem a loucura experimental de “Um”, com captação de garrafas plásticas, bicicletas, um violino etc. É a experiência de Cage na essência: o silêncio como espaço pra você descobrir sons, tonalidades, experiências musicais no dia a dia. É a mais não-música do disco. Nem mesmo os mais de vinte um minutos de “Árvore”, com suas pinceladas “orientais”, consegue efeito tão intenso.
O Sobre A Máquina evoluiu sua música experimental nesse sentido de fazer mais com menos. Não é preciso implodir ou destruir o mundo, fazer barulho, mas descobrir os espaços vazios. Essa é a lição que aprendemos desde o começo do século passado na música torta e é o que separa o experimental ruim do experimental bom: o equilíbrio entre o que choca e o que acalenta.
Atingir esse equilíbrio é fruto da sabedoria adquirida por uma boa bagagem cultural e por alguns anos de experiência (não tem nada a ver com idade) – e é a experiência e a sapiência de usar o que se aprendeu que diferencia os meninos dos homens, não só a ousadia. Isso a banda aprendeu e “Sobre A Máquina” é a obra que traduz com louvor o conceito.
NOTA: 9,0
Lançamento: 4 de dezembro de 2012
Duração: 87 minutos e 51 segundos
Selo: Sinewave
Produção: Cadu Tenório e Emygdio Costa
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