RESENHA: STABSCOTCH – UNCANNY VALLEY

Março de 1967

The Velvet Underground, junto com a Nico, lança seu primeiro disco. E tudo naquele álbum tinha uma dissonância estética: a maneira informal de tratar drogas, sexo e a sonoridade que me pareceu extremamente crua na primeira vez e com as consecutivas ouvidas transformou-se na certeza de que dava pra criar (e muito!) a partir de certa falta de polidez. Os experimentos sonoros, às vezes intensivamente ruidosos, a atmosfera obscura duma cidade de quem anda à margem e ao mesmo tempo extrai uma carga poética. “The Velvet Underground & Nico” representou pra mim um ecletismo que o garoto fã de MTV precisava. A temática que flertava com o niilismo, a rebelião contra o “cara mais próximo” e a maneira incomum que tudo isso foi gravado – num tempo em que produção não convencional ainda não era vista como estética. E mesmo que fosse, a primeira vez que eu ouvi isso foi totalmente divergente da maioria das coisas que eu havia ouvido. O clima sombrio, o humor hedonista e cargas complexas que se entrecruzam afirmando pouca coisa, apenas suspendendo o exato instante em que a disciplina urbana não significava nada pra aquelas pessoas.

Dezembro de 1973

Muito tempo depois do Velvet, eu fui conhecer o Magma, em específico o “Mekanïk Destruktïw Kommandöh”, um épico que era tipo um ritual pra umas coisas que eu não entendia muito bem, mas me divertia. Uma ficção científica sobre guerra, apocalipse – embalado ao ritmo duns sons desordenados, advindos de sintetizadores que meio que malignamente orquestravam algo que, aparentemente, era muito perverso. Todas as misturas que fazem o álbum ser adjetivado de “denso” sumarizam um ritualismo que criou suas próprias regras.

18 de outubro de 1988

Em alguma época que minha única fonte musical era a MTV, os clipes do “Daydream Nation”, do Sonic Youth, passavam nos programas “Lado B”, essas coisas. Eu lembro como era muito marcante as melodias grudentas e de como o clima “fácil” se perdia nas guitarras. Ainda não sabendo muito sobre música (chuto que hoje eu sei menos), não foi lá muito difícil associar com o primeiro disco do The Velvet Underground. E sempre que eu ouço o “Daydream Nation”, eu recupero uma energia que, sei lá, ficou esquecida naquela empolgação juvenil. Não é uma nostalgia saudosa, é mais um tipo de ansiedade. “Vamos lá, vamos montar uma banda!”. “Daydream Nation” também é cru, urbano e carrega em seus barulhos uma rebelião contra algo incerto. No entanto, ele consegue ser mais “abstrato” que as outras bandas “guitarreiras” que eu viria a ouvir depois e talvez aí resida seu maior experimento. O estilo das letras “descoladas” variam de imersões sociais paranoicas pra assuntos extremamente íntimos. Dissonante, bravo e rítmico – quando eu realmente “saquei” qual era do “Daydream Nation” eu já estava hipnotizado pela coisa toda.

27 de março de 1991

Até perceber que a introspecção do Sonic Youth não era impactante o suficiente pra me levar a terrenos “solitários”. Eu quero dizer, a ansiedade que “Daydream Nation” carrega é energética a seu modo. O que o Slint fez no “Spiderland” foi uma parada completamente diferente. Os versos esquisitos das guitarras emanando suspense e melancolia em uma atmosfera fria e complexa. A hipnose de “Spiderland” foi outra, duma noite bem séria, sem espaço pra humor.

23 de junho de 1998

Um amigo disse: “isso é tipo metal atonal”. Eu não fazia ideia de onde vinha aquela definição e até hoje não sei bem, mas “Obscura”, do Gorguts, mudou a porra toda. A técnica caótica, complexa, dissonante, com tempos totalmente imprevisíveis; “Obscura” veio, pra mim, como o passo naturalmente maníaco seguindo a linha do tempo de todos os discos citados (eu não lembro quando eu ouvi cada, a única certeza é que “Obscura” veio depois). “Dá pra inventar suas regras na escuridão” é uma coisa que me vem à mente quando ouço isso. É pesado, é agressivo e aborda uma temática vasta numa atmosfera filosófica.

17 de novembro de 2006

Confesso que embora todos os anteriores sejam belos às suas maneiras, absolutamente nenhum chegou perto do deslumbre que eu senti quando eu ouvi “Labirinto D’acqua”, do Yūgen. Eu quero dizer, num álbum instrumental este disco pareceria ser a espécie de conclusão lógica (lógica apenas dentro da minha cabeça, verdade seja dita) de sensação cristalina (embora eu não saiba precisar o porquê) que todos estes álbuns me passaram. Eu tive a absoluta certeza de que nada ultrapassaria o que este disco causou (e ainda causa) em mim.

Até pouco tempo.

A abertura de “Uncanny Valley” é devastadora e abrasiva com um baixo desacelerado (?), em uma espécie de ataque alucinatório do vocalista. Ele está nos contando uma história, aparentemente. Ele meio que tá se explicando. Ele tá explicando porque o céu é fechado. Ele tá lá, com todas estas perguntas meio malucas, mas há uma noção imprecisa de que há um lar, e ele está lá, no tal do lar. Todo o clima da música muda pra um ritual meio alienígena (tipo uma galera dançando no meio do mato) e as guitarras exibem sua força de verdade – no fundo, uma voz feminina muito agressiva, disputando espaço com as guitarras enquanto a banda inteira entra numa fritação esquisita. Visceral demais.

Não apenas o vocal é indiscernível ou os instrumentos (em certos momentos), mas, aparentemente, a apelação lírica é pra um desentendimento num diálogo entre várias pessoas bêbadas que não conseguem encontrar suas carteiras. Mas eu não quero apontar que é simulação ou apenas sátiras: o desentendimento em ” Uncanny Valley” é encarado como propulsor (temático e sonoro) que deixa tudo que rola no disco extremamente confuso. A capa diz muito: são elementos recolhidos duma realidade objetiva e distorcidos no próprio universo criativo da banda.

O desejo venceu os sonhos e talvez “Uncanny Valley” seja uma afirmação de como desejar é algo caótico e histérico, que arruína o ser em ansiedade e nervosismo. Então, o sujeito quer tudo na hora e tudo que parte da sua mente e cruza sua visão tem uma história completamente infundada e absolutamente qualquer um que passar pela sua frente parece uma figura asquerosa digna de rancor. As letras seguem praticamente um fluxo de consciência acelerado, fragmentado em divagações poéticas, cruas e urbanas.

Em “Tanic”, é até possível encontrar um refrão, coisa rara no álbum. As canções seguem “mini” atos que se baseiam na estrutura lírica pra incorporar ou se desfazer de elementos sonoros. Apesar de todo este “asco” arremessado ao ouvinte, algumas partes são realmente grudentas e cravam na cabeça. Pra depois serem esfaceladas em dissonâncias em constantes desencontros e mudanças significativas no andamento da canção. Isso faz cada música ser uma espécie de imã que atrai elementos corrosivos (pra sua própria estrutura) e se fechar conceitualmente em seus próprios dilemas.

Uma perseguição noturna alucinada numa cidade calma. Perseguindo o nada. Fugindo de suas próprias neuroses. Com certeza “se libertar da própria neurose” é uma das metas destes caras. Mas fica relativamente difícil quando estão em uma construção instrumental “mais ou menos” estruturada e eles desviam pra ampliar em direções divergentes tudo o que estava agrupado. É nessa sucessão intrinsecamente caótica que qualquer coletividade é destilada em lances vulgares individuais. Aparentemente, é difícil pra eles fugirem da própria megalomania criativa.

É difícil, também, fugir da sombra desgastante que parece perseguir o ser. Impedindo pensamentos mais “leves” na claustrofobia psicológica de ver as mínimas possibilidades se fechando. É um paradoxo, pois o ouvinte é alertado sobre a violência da luz. O Stabscotch sente-se em casa apenas na escuridão. Na primeira faixa, “Open Sesemji”, isso é anunciado. O que vem depois pode ser encarado pela tortura do processo de mediação entre o sujeito torturado e o mundo (entidade que exerce a tortura).

A “nova extinção” é o guia interno do Stabscotch e pode-se creditar este guia catastrófico ao mundo torturante, mundo que alucina o ser. A resposta natural pra isso é a paranoia, o histerismo. Por mais estranho que possa parecer é no ritualismo externo (aparições alienígenas) que a banda encontra uma possibilidade de manifestação saindo da prisão humanitária. Humanitária em sentido de expectativas mesmo: ser um bom cidadão, estabelecer metas, comer no horário certo etc. Saber lidar com essas obrigações formais é impossível pra esses caras.

No processo alucinatório ao decorrer do disco, as figuras que simbolizam o rompimento com o aprisionamento vão se tornando esteticamente extremas: gargantas sangrando, criaturas semimísticas celebrando a violência. O “rito” atinge seu primeiro ápice na faixa “The Fungal Brooden Rainforest”. A letra desta música é sugestiva: “Ooo0œ0OoŒo0oOoo0œ0OoŒo0oOoo0œ0OoŒo0oOoo0œ0O”. Parte-se pra um simbolismo esotérico e ritualístico em que flautas encenam interação que é mais melódica e explicitamente envolvente do tudo acontecido até então.

A confusão inicial se assume num gesto alternativo de celebração. Celebra-se a fuga da luz, da prisão social e é no meio duma floresta bizarra que tal comemoração é possível – em meio a danças não tradicionais e relação não idealizada/romantizada com a natureza. A perpetuação da autossabotagem das letras continua na música “Cerulean Mirror”. O que não é nem páreo pro ultrassilogismo apresentado em “Black Effigy Speaks”. Nesta, de alguma maneira oculta, é admitida que as palavras estão perdidas em níveis significativos. Aí que reside a autojustificativa da banda: por todos símbolos tradicionais estarem resignados a uma hierarquia semântica que o rompimento com o estabelecido é a única maneira de erradicar a própria paranoia.

Através deste processo maluco de liberação, as melodias mais bonitas e cativantes surgem. A ambientação confusa ainda ronda o ser, mas é nesta repetição forçada – distorções, grunhidos ininteligíveis – que o caminho (pro que quer que seja) é criado. A representação obscura dos prazeres desconhecidos se desdobra verdadeiramente: quando o oculto deixa de ser velado, que o acesso a um “si mesmo” esquecido é concebido. “Uncanny Valley” é um método criado por tentativa e erro que objetiva abdicar a luz que cega através da extrapolação de limites dogmatizados.

O risco é admitido quando se transforma escravo destes prazeres obscuros. No entanto, isso não é abordado como algo condenável. Muito pelo contrário, é motivo de orgulho pra uma afirmação após um caminho muito árduo. Pois estas obscuridades obscenas foram conquistadas. Elas se transformaram no próprio legado. Elas são, em última análise, a projeção do ser que escapou – através dum barulhento processo paranoico – da luz dominante. Pode tudo nesta resenha parecer muito alucinatório mas porque o disco é essencialmente uma espiral de delírios criados pra combater a própria paranoia.

Note que todos os elementos de celebração “convencionais” fazem parte do acessório do Stabscotch. Mas eles são reestruturados. Melhor: desestruturados em função da emergência que se coagula no núcleo esparso da banda. A urgência pulsa mais que a necessidade. Os sons ao redor, os mínimos cânticos, os versos hipnotizantes das guitarras em “The Spires” subpostos por vocais mínimos indiscerníveis – são formas de prolongar o espanto, são formas de dar vida à paranoia internalizada. Este processo intermitente de materialização esquizofrênica erradica o elemento “tradição” e o elemento “cultural”.

Eu insisto que este disco tem uma semelhança com os anteriormente citados nos seguintes pontos: a paranoia urbana do The Velvet Underground é catalisada, lançando o indivíduo pra fora do convívio social. Estabelecendo novas possibilidades a partir da perda errante e do abandono de uma imposição. Toda a dimensão simbólica do álbum (isso fica mais explícito no Bandcamp da banda) aponta pra instrumentos recursados na estruturação desta fuga.

“Looking Inside A Fire Pit”, a última canção, isola o acúmulo de signos pra uma mediação honesta entre fogo, indivíduo e escuridão. O fogo consome o corpo no rito final. O mundo passível de aderência novamente. A paranoia e a ansiedade foram, temporariamente, deixadas pra trás.

01. Open Sesemji
02. Hide Me
03. Hands Undressed
04. Nick Of Time
05. Tanic
06. Along Alligator Drunes
07. Radio Spiricom
08. TDYКИLА-THУRУ WARA
09. Creature Control
10. The Fungal Brooden Rainforest
11. Cold Bullet
12. Cerulean Mirror
13. Black Effigy Speaks
14. Unknown Pleasures
15. The Spires
16. I Master
17. Liberation // Dimensional Snot
18. Looking Inside A Fire Pit

NOTA: 8,5
Lançamento: 13 de janeiro de 2017
Duração: 104 minutos e 02 segundos
Selo: Visual Disturbance
Produção: James Vavrek e Tyler Blensdorf

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