RESENHA: SWANS – TO BE KIND

NADA É MAIS JOVEM

Lá se vão sessenta anos. E Michael Gira acaba se tornando, a contragosto, ou sem querer, um exemplo dos tempos atuais. Gira se mostra com mais bagos do que uma geração inteira que tenta se alocar como ídolo dos seus contemporâneos. E ele nem começou tão cedo pra servir como exemplo, tinha quase trinta anos quando saiu o primeiro disco do Swans, “Filth”, em 1983, uma porrada pós-punk, industrial, hardcore.

Minha mãe tem pouco mais de sessenta anos. A sua avó pode ter essa idade, por aí. Se hoje mães e avós se espantam com o funk ostentação, têm urticária com meninos e meninas rebolando até o chão, se contorcem de pavor com rolezinhos marcados em redes sociais-virtuais, e nada mais do que toca no seu aparelho de som as espanta, é provável que assim se entenda a dimensão do lodo de bom-mocismo que vive a música jovem e não periférica de hoje (por sorte da nossa sociedade, na periferia, ninguém se espanta com funks, rolezinhos e afins, ora bolas).

Nesse pequeno mundo em que vivemos, todos fazem de tudo pra agradar a todos. Artistas tentam agradar veículos de comunicação, que tentam agradar assessorias, que tentam agradar produtores, que tentam agradar artistas que, eventualmente, tentam agradar o público. Nada fora do roteiro, nada que tropece na busca ao final feliz ou do prazer, nem que fugaz, de uma manchete. Raras são as bandas, raros são os estilos que ainda podem sacudir um pouco o estabilizado. Você pode pensar no mais gutural dos hardcores e talvez seu pai não se espante mais – pode se incomodar com a barulheira, mas não pedirá que você troque de roupa ao sair na rua como seu ídolo.

Com sessenta anos, Gira entrega ao mundo o décimo terceiro disco de sua banda. É provável que sua mãe, seu pai, sua avó e até você mesmo se espantem com a ferocidade de “To Be Kind”. Se for direto à dupla “Bring The Sun” / “Toussaint L’Ouverture”, é certeza. Não pelo hipnótico cerco que o Swans faz aos seus ouvidos em vários momentos. Não pelos ruidosos trechos que remetem à sangrenta história que o personagem principal da revolução haitiana viveu durante a virada dos séculos XVII e XIX. E talvez nem tanto pelas atonalidades que Michael Gira gosta de trabalhar e propalar com um orgulho inabalável.

O que incomodará em “To Be Kind” é saber que um homem de sessenta anos pode fazer mais estrago no rumo que segue a música dita normal, de rádios, televisões e blogues, do que qualquer moleque cheio de raiva adolescente. Ele não está sozinho, é claro. Blixa Bargeld, pra citar um exemplo, tem cinquenta e cinco anos. Mas se estivesse sozinho, a dupla “The Seer” e “To Be Kind” já teriam valido o serviço à humanidade.

“To Be Kind”, a bem da verdade, é uma espécie de continuação mais palatável de “The Seer”, de 2012, o disco que Gira admite ter levado trinta anos pra ser capaz de fazer. Nenhum rapaz de trinta anos, muito menos de vinte e poucos, por mais raivoso que seja, por mais que grite alto e chute canelas da realeza e da polícia, tem bagagem cultural pra isso. Quer dizer, agora tem, se ouvir com atenção, se jogar suas frustrações pra fora com essa trilha sonora. Por que não?

Nesse sentido, Gira não é gênio. Só é perspicaz. Teve que viver todo esse tempo, tomar todos os baques que tomou (e todos tomamos) pra se tocar que a criação da “melhor música que seria capaz de fazer” depende de um histórico complexo. Sua diferença pro resto da humanidade é que há quem nem pense em transformar essa bagagem em arte. Outros que tentam e não conseguem. Outros que deixaram o frescor nos tempos de outrora. Veja o caso de David Bowie, veja o caso de Iggy Pop, ambos reforçando o sucesso do passado (sem críticas de valor aqui, certo?).

Pois o Swans de Gira não é o Swans de “Filth”, nem de “Children Of God”, de 1987, e muito menos o Swans do quase-pop “The Great Annihilator”, de 1995. O Swans que surgiu em “The Seer” – e que se reforça em “To Be Kind” – é o Swans de quem está cheio de cicatrizes e que até não se importa em perder mais de sangue – mas que seja por um outro motivo, o proposital, o venal, que seja o resultado da sua entrega ao esgotamento.

Se nada é perfeito, “To Be Kind” fala de amor e sexo – de muito sexo, “Some Things We Do” e “She Love Us!” – e é minimalista no discurso, é um tanto demente, essa é sua maior fraqueza. Gira não escreve com critério, refletindo sobre nada, é meio aleatório. Mas se as letras são poemas que não fazem muito sentido (como também não faz a capa dos bebês de Bob Biggs), sonoramente, o Swans é arrasador. Não há uma só canção em “To Be Kind” que não seja impactante.

Há aqui um certo jogo de cintura estranho a “The Seer”. Um bom punhado de sensualidade, um groove, por assim dizer: batidas secas, compassadas, baixo marcante, dá pra bater o pé, balançar a cabeça. “Screen Shot”, “A Little God In My Hands”, “Kirsten Supine” (com um começo meio “balada” e participação de St. Vincent) e “Oxygen” podem ser definidas assim, embora todas elas, de uma forma ou de outra, vão te tirar da zona de conforto, fazer os tímpanos vibrarem de forma diferente: há noise, espasmos explosivos e, como contraponto importante, algum sossego. “Nathalie Neal” é de uma estranheza ímpar. Uma sinfonia feita por colagens, passagens de violão, ruídos e mais baixo intenso. E o trecho final da faixa-título, um estrondo que fará você necessitar de uma aspirina ao final da audição.

O Swans é uma banda de velho – literalmente. Mas os sessenta anos de Gira e os trinta de carreira do grupo parecem reinventar a novidade, a motivação rock’n’roll e o percurso lógico do tempo. Nada, nem ninguém, parece ser mais jovem e vibrante do que essa banda hoje em dia.

Ouça “A Little God In My Hands”:

Ouça “Oxygen”:

NOTA: 9,0
Lançamento: 12 de maio de 2014
Duração: 120 minutos e 33 segundos
Selo: Young God
Produção: Michael Gira

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Comentários

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2 comentários

  1. Caramba! Que resenha sensacional! Vou reouvir com todas as suas palavras ecoando na cabeça. Thank you o/

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