Desde muito tempo atrás, diversos artistas vêm utilizando a própria gravação e seus ruídos (in)comunicativos pra criar música de um passado borrado, indeterminado ou inventado. Considere que o The Caretaker (projeto musical de James Leyland Kirby) tem tentado, nos últimos anos, construir o paradoxo perfeito: o horror do exterior como alvo pra uma beleza impossível – a que aceita elementos mundanos e os observa como acessos velados pra possibilidades extraordinárias. Kirby tem mostrado um lado alternativo pra realidade cínica que enfrentamos (coisa que outros contemporâneos também têm feito, mais especificamente Seth Graham e seu humor e as tentativas de Noah Creshevsky de reanimar objetos mortos). Então, talvez, esse outro modo de assimilar o excesso de coisas possa conduzir o ouvinte pra um tempo que lhe faça esquecer subjetividades ancestrais ou o peso histórico e o liberte no horror do não-simbólico e nasça sua consequente liberdade.
Leyland Kirby se equivale da decadência da memória pra criar uma tensão repetitiva que elabora um ambiente ao mesmo tempo em que retrai outro, como se a limitação só existisse pra imagens pré-concebidas. Se através da monumental série “Everywhere At The End Of Time” (todos os estágios reunidos aqui) eu posso encontrar a demência do seu criador, é porque este teve um vasto trabalho ao reciclar memórias e redistribuí-las como paradigmas de um mundo sempre em construção. Isso já seria difícil com palavras (desconstruir a linguagem sujeito-objeto), mas sonorizar o próprio processo de lembrar e perder as lembranças é um empreendimento corajoso.
Talvez nós não possamos entender como se chegou neste estágio sem passar pelos outros três, sem pressa alguma: no primeiro, tínhamos uma leve atmosfera instrumental; no segundo, uma solidão insuportável; o terceiro era de filetes ruidosos mal produzidos. Depois de tudo isso, as partículas esboçadas nos anteriores assomam-se neste disco, e estamos realmente presenciando autorreferências do universo do criador e processando-as como nossas, como se a criação dele também fosse algo assimilado/criado por nós. Nos quatro pedaços que constituem o disco, a imersão é no universo já construído a partir dos fragmentos revividos, esquecidos e criados. Eles terminam no início, iniciam no meio de algo já constante – como se chegassem de paraquedas no universo do seu criador e tivessem de se adaptar a um fluxo tão inconstante e imprevisível quanto a vida e a memória.
Essa música se engaja com o ouvinte na medida que estabelece um espaço cocriador que assimila tanto rupturas quanto potenciais nascimentos. Porque tudo se retrai e se estende que a movimentação incessante entre os polos da memória ascende pra territórios novos e revisita lugares ocultos. Esses tipos de sons não são resguardados por nada a não ser a bagagem do ouvinte e por isso recusam os confortos sonoros presentes em todos os outros trabalhos de Kirby. A música recusa a retromania porque cultiva as familiaridades nascidas da intimidade sem referenciá-las como algo consumível; pra se ter acesso a algo é preciso que as relações com essa coisa superem as meras convenções. Isso é uma música criadora porque utiliza da sua cacofonia, às vezes dispersiva às vezes aglutinadora, pra redimensionar a relação de seus sons com o ouvinte e deste com a sua vida. Os sons ignoram assentamentos simbólicos porque são um processo contínuo de ruptura: rompem as associações e rompem qualquer ameaça de “ambientação soturna”. Jamais são reduzíveis a tal ponto.
Na íntegra:
Utiliza-se de todo o processo de gravação pra romper uma linha histórica plausível e permitir que o ouvinte incorpore e devore o que ouve. Sua democracia de acessos e troca de experiências reconstitui constantemente o que de fato é ouvido: são sons de qualquer lugar da vida transformando a relação da memória e potencializando sua dizimação em algo criativo. Em seu ponto mais básico, dialoga com algo por qual todos passam: encarar a perda da memória, o vazio dessas perdas, a confusão com o processo de esquecimento etc.
Esse é o esforço único dessa música: reverter o processo de obsessão demente com a perda das coisas e transformá-lo na euforia criativa suspensa no êxtase desses acontecimentos. O produtor criando algo que rejeita um cinismo ao perceber que tudo é diluído através da constatação em que cada resíduo, teoricamente descartável, há uma fonte considerável aguardando acolhimento. É uma música iluminada pela perspectiva de que esquecer não leva à loucura e ao nada, mas perceber que os processos de esquecimento possibilitam uma bonita apreensão do instante, do momentâneo.
Tristemente, essas coisas são edificadas na música e perdidas na realidade. Qualquer desafio é visto com dificuldade e cansaço e as partículas ocultas que poderiam conduzir o ente pra uma perspectiva mais branda e benévola perdem-se na velocidade das coisas e dos dias. O resultado visto é mais como os três primeiros estágios das gravações: uma solidão opressiva porque não conseguimos capturar nada e a melancolia que resta depois das apreensões falidas.
Com o lançamento de “Everywhere At The End Of Time – Stage 4”, The Caretaker observa a superação da doença registrada nos três primeiros a partir da constituição sonora que se relaciona com todos os sons descobertos. Numa sociedade que busca conforto em autoafirmações, a afirmação de Kirby parece algo utópico: reencontrar na própria decadência uma força poética que permita uma nova forma de se relacionar com o mundo, com seu corpo e com sua mente. Bater palmas pra um quarto escuro sempre vai parecer algo apenas bobo, por mais que quem aplauda esteja sorrindo. As opções falsas construíram o cinismo que causou o isolamento das primeiras gravações. Kirby termina o disco com uma ambientação prolongada que abriga ruídos indistinguíveis, mostrando que a tensão entre o que se aparenta e a vontade de criar algo, quando justapostas, são capazes de encontrar paz nos lugares mais calamitosos.
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1. Stage 4 Post Awareness Confusions
2. Stage 4 Post Awareness Confusions
3. Stage 4 Temporary Bliss State
4. Stage 4 Post Awareness Confusions
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NOTA: 8,5
Lançamento: 5 de abril de 2018
Duração: 67 minutos e 18 segundos
Selo: History Always Favours The Winners
Produção: Jim Kirby