O trio australiano já foi comparado a um rio, cujo fluxo de água constante remete ao som imparável e contínuo. No seu vigésimo disco, o Necks não refere-se ao corpo aleatoriamente. A ideia do rio foi boa, mas imprecisa: estamos falando de outro líquido, o sangue – contínuo, fluído, incansável, vigoroso. E a diferença é importante: esta obra está mais pra um líquido viscoso e impregnante, do que pra algo que remeta à pureza cristalina da água.
O corpo no qual o Necks está embrenhado é, pra ser simplista e óbvio, a expressão de uma estrutura tão complexa quanto a própria ideia de música, sem uma catalogação precisa e indiferente a interpretações. O Necks expõe-se por quase uma hora, em uma única e difusa faixa, alternando em poucos momentos seu longo e constante fluxo.
“Body” tem Chris Abrahams (teclas), Tony Buck (bateria e guitarra) e Lloyd Swanton (baixo) dispostos a percorrer todo esse corpo sem muita pressa, vasculhando cada veia, centímetro, orifício, célula, glândula ou órgão como se analisasse a si próprios mais intensamente do que qualquer momento da vida foi capaz. Uma longa carreira como essa merecia uma auto-interpretação de habilidades: do que afinal o Necks é capaz?
A julgar por essa quase hora de sons hipnóticos (às vezes rudes), o Necks está bem resolvido. Não se desespera, não pretende impressionar, não tem mais nada pra provar, não tem as ambições que os jovens desprendem e nem se importa tanto que receptividade – ou, de outra forma, iria por outro caminho mais fácil. Mas são aquelas descobertas da idade: nem sempre a nossa necessidade se confunde com os anseios alheios. Na escolha entre um e outro, melhor ficar com a nessa.
O bumbo de Buck, que se ouve lá pelo décimo-nono minuto, é o momento mais delicado. A banda chegou ao coração. A forma como o sangue flui a partir daí é uma renovação. Embora ainda hipnótica, a obra vai ganhando matizes mais metálicas, “modernas”, e a explosão logo a seguir é o preenchimento do cérebro pelo sangue. Como se sabe, é onde tudo acontece, especialmente a vida criativa, inteligente, humana.
Embora a interpretação possa parecer um tanto simples, o som do Necks não tem nada de ingênuo. É um processo, uma construção (ou a última camada, depois de vinte discos). O trio consegue interpretar sua lógica de maneira objetiva e clara, o que nem sempre acontece nesse tipo de ambiente sonoro. Nesse sentido, o corpo do Necks aparenta rejuvenescido porque foi treinado, desde 1987, e jamais ficou ocioso. Agora, tudo funciona de maneira sublime, com experiência e vivacidade. O Nekcs está pronto pra outros trinta anos experimentando os sons que fortalecem o corpo e a mente.
—
1. Body
—
NOTA: 9,0
Lançamento: 14 de agosto de 2018
Duração: 56 minutos e 40 segundos
Selo: Fish Of Milk
Produção: The Necks e Tim Whitten