Antônio Candeia Filho nasceu em 17 de agosto de 1935. Embora a seu pai tenha sido atribuído a criação das comissões de frente nas escolas de samba, e desde cedo tenha contato com os sambistas de Oswaldo Cruz, terra da Portela, foi curiosamente após uma tragédia que transformou sua vida que Candeia no compositor realmente reverenciado.
Antes, na década de 1950, foi autor de vários sambas campeões da Portela. Ganhou o título com três deles. O primeiro deles, com dezoito anos incompletos, em 1953, “Sete Datas Magnas”, deu à escola notas dez em todos (sem exceção) os quesitos. Depois, em 1957, com “Legados De D. João VI”; e, enfim, em 1959, com “Brasil, Panteon De Glórias”, com Casquinha, Picolino, Waldir 59 e Bubu.
Mas em 1961, entrou pra polícia. Diziam que era de mão pesada e sentava o sarrafo em que achava que deveria sentar a mão. Truculento, chegou a ser mal visto por alguns companheiros sambistas. Mas quem está na linha pode ser alvejado. E Candeia foi. Um deles atingiu sua coluna e fez dele paraplégico. Sem movimentos das pernas, caiu desolado em isolamento, fechado em casa, sem receber quase ninguém.
Foram os antigos amigos que trataram de tirá-lo da depressiva situação. Após um tempo, o quintal de sua casa virou ponto de encontro pra animadas e criativas rodas, de onde, como de outros endereços históricos, surgiram sambas clássicos que animam rodas até hoje.
Candeia teve reconhecimento em vida. Gravou vários discos, alguns de sucesso. Mas o que ainda é tido como o mais importante e aclamado é “Axé”, de 1978, ano de sua morte (ele morreria em 16 de novembro de 1978, aos 43 anos, antes de ver o disco chegar às lojas, no Natal daquele ano, via WEA/Atlantic).
Pra muitos versados em samba, “Axé” é não só o canto do cisne de Candeia (o que já seria motivo pra culto) como o mais perfeito retrato de sua criação, principalmente pós-tragédia.
Um dos melhores exemplos é a letra de “Dia De Graça”, um canto de igualdade racial, mas que parece ter sido escrito por ele pra ele mesmo: “Hoje é manhã de carnaval (ao esplendor) / As escolas vão desfilar (garbosamente) / Aquela gente de cor com a imponência de um rei, vai pisar na passarela (salve a Portela) / Vamos esquecer os desenganos (que passamos) / Viver alegria que sonhamos (durante o ano)”.
Esqueça as agruras do passado, pense na alegria do presente. É Candeia tentando redimir seus erros, ao mesmo tempo em que se demonstra arrependido: “Mas depois da ilusão, coitado / Negro volta ao humilde barracão / Negro acorda é hora de acordar / Não negue a raça / Torne toda manhã dia de graça”.
O disco é um dream team do samba. Tem composições do próprio Candeia e resgate de outras do mestre Paulo Da Portela (“Ouro Desça Do Seu Trono”), Manacéia (a famosíssima, graças a Zeca Pagodinho, “Vivo Isolado Do Mundo”), Martinho da Vila (“Amor Não É Brinquedo”, junto com o próprio Candeia), Casquinha (“Invocado”) e até Aniceto, que é do Império Serrano (“Beberrão”).
Candeia tinha nessa fase da vida a paixão pela Portela na mesma medida que tinha pelo samba (vale ir atrás também de “Luz Da Inspiração”, o disco de 1977). Em 1975, criou a Escola de Samba Quilombo, que só executaria sambas clássicos e jamais disputaria campeonatos, unindo gentes de todas as agremiações.
Como a prática é o que conta, “Axé” oferece ao ouvinte a mais próxima sensação de uma roda de samba, com as garrafas tilintando nos copos (ouça “Gamação”), mostrando que a harmonia do Quilombo existia no quintal de Candeia. Eis aqui as vozes de Dona Ivone Lara, ali a de Clementina de Jesus, entre outros; e ali no meio, Luna, Marçal, Gordinho, Arnô Canegal, Wilson das Neves, Carlinhos, Geraldo Bongô, João de Aquino, Valter (no 7 cordas) etc.
“Axé” é bem gravado, capta uma alegria inconteste dos momentos de grandes artistas capitaneados pelo líder Candeia, com todo seu carisma.
Esse é um disco que merece ser revisitado, não só às vésperas do Carnaval. “Axé” é uma obra de arte da música popular brasileira. Infelizmente é difícil de ser encontrado nas lojas. A Internet ajuda. Cace por aí – e se achar em formatos físicos, compre. A raiz da nossa música passa por aqui.
Ouça o disco na íntegra:
1. Pintura Sem Arte (Candeia)
2. Ouro Desça Do Seu Trono (Paulo da Portela) / Mil Réis (Candeia/Noca)
3. Vivo Isolado Do Mundo (com Manacéia) (Alcides Malandro Histórico) / Amor Não É Brinquedo (Candeia/Martinho da Vila)
4. Zé Tambozeiro (com Clementina de Jesus) (Candeia/Vadinho)
5. Dia De Graça (Candeia)
6. Gamação (Candeia) / Peixeiro Granfino (com Dona Ivone Lara) (Bretas/Candeia) / Ouço Uma Voz (com Chico Santana) (Nelson Amorim) / Vem Amenizar (Candeia/Waldir 59)
7. Invocado (Casquinha) / Beberrão (Aniceto do Império/Mulequinho)
Discão, vou até postar ele por conta deste texto!
hehehe