Jacob Pick Bittencourt nasceu em 18 de fevereiro de 1918, filho de Francisco Gomes Bittencourt, de Cachoeiro do Itapemirim, no Espírito Santo, e da polonesa Rackel Pick. Carioquíssimo, das Laranjeiras, e depois morador da Lapa, já com 12 anos tocava um violino presenteado pela mãe, com o qual se enrolava todo pra manusear o arco.
Jogou fora o arco, passou a usar grampos de cabelo pra tocar o instrumento como se fosse uma viola estranha, coisa de menino. Logo alguém haveria de lhe apresentar um instrumento semelhante: o bandolim.
O bandolim, originário da Itália, tem proximidade grande com o violino. Tem cordoamento duplo, com quatro pares de cordas (contra o cordeamento simples do cavaquinho português, que o brasileiro se adaptou melhor), afinadas da mesma forma que o violino: Sol, Ré, Lá, Mi.
Ao 16 anos, em 1934, já estava na rádio tocando os choros de Pixinguinha, solando como um monstro, apresentando uma habilidade que faria com que, mais tarde, os críticos como Sérgio Cabral (o pai, o pai!) acabassem por lhe atribuir a condição de “o maior instrumentista que o Brasil já teve”.
Jacob do Bandolim era de fato um gênio – não só no choro, mas na composição, na valsa, na polca, no samba. E na preservação da cultura musical brasileira, ao ele mesmo gravar mais de cinco mil registros de áudio (de músicas a entrevistas e até narrações de jogo de futebol – como a de Jorge Cury na final da Copa de 1958, Brasil campeão).
Deixou mais de seis mil partituras, coleção que o MIS carioca abraçou após a digitalização a cargo do Instituto Jacob do Bandolim (visite aqui, é um baita material): “meu arquivo é minha vida. Lá (no MIS) havia um sofá, uma garrafa com café e outra com água. Aí minha mulher tirou o sofá, porque eu estava dormindo dentro do arquivo”, disse a Blota Junior, da TV Record.
Era um nacionalista tamanho que o fizera conservador, evitando estrangeirismos e “modernidades” na música, “como fizeram com o samba”, disse certa vez.
Da sua vastíssima obra, algumas músicas ficaram na memória nacional. Em 1947, ao estrear em disco, fez “Treme-Treme” (ouça aqui). No ano seguinte, novo disco, e novo clássico, “Remelexo” (ouça aqui). Em 1950, o sucesso “Pé-De-Moleque” (ouça aqui), e no ano seguinte, “Vascaíno”, em homenagem ao seu clube do coração (ouça aqui). Uma sequência de clássicos impossível de listar se seguiu, incluindo quatro obras interpretando composições de um ídolo seu, Ernesto Nazareth.
Jacob do Bandolim é caso raro de homenageado em vida. Em 1958, Radamés Gnatalli escreveu a suíte “Retratos” especialmente pra bandolim e especialmente pra ele, acompanhado de orquestra de cordas. Composta de quatro movimentos, era dedicada e inspirada em temas de Pixinguinha, Chiquinha Gonzaga, Anacleto de Medeiros e Ernesto Nazareth, todos ídolos de Jacob. O próprio Jacob executou a obra como solista, na primeira audição pública, em 1964. “Jacob toca Jacob, os outros tocam bandolim”, disse Gnatalli.
Mas foi em 1961 que Jacob do Bandolim gravou sua obra mais divertida e faceira. “Assanhado” não foi um sucesso maior ou obteve mais reconhecimento que qualquer outra canção dele. Mas ampliou o apreço popular por ele. Tanto que no mesmo ano acabou eleito o “Melhor solista popular”, recebendo o Prêmio Cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro.
É uma música com certa dificuldade de execução (que tentar? Eis a cifra aqui), num compasso dois por quatro, um choro-samba com pouco mais de três minutos, na versão mais conhecida.
Foi lançada como compacto simples de dez polegadas e 78 rotações pela RCA Victor, sua gravadora de praticamente toda a vida. No lado B, um choro de Zequinha de Abreu, “Não Me Toques” (ouça aqui), uma escolha de título curiosa, como se implorasse atenção ao lado A apenas – mas ouça as duas, faça um favor a si.
Embora tanto em 1961, como possivelmente em época alguma, o choro não embalasse nenhum curso de carnaval de rua – as marchinhas sempre foram as preferidas dos rádios e das ruas – “Assanhado” tem certa força pra tal, principalmente em tempos em que blocos de rua se apropriam de David Bowie, Beatles, Bob Dylan e outros pilares do rock. Jacob do Bandolim, conservador que era nesse sentido (patriotíssimo), viraria o nariz e se perguntaria: “se rock sim, por que choro não?”.
“Assanhado” é choro, é samba, é gafieira, é dança de salão, é cordão, é brejeirice. Podia ser carnaval também. Ao menos, mais de cinquenta anos depois, ainda funciona bem numa roda de samba de categoria.
Jacob morreu em 13 de agosto de 1969. Tinha 51 anos, ataque cardíaco. Foi cedo. Seu filho, Sérgio Bittencourt, virou jornalista, foi jurado do Flávio Cavalcanti (“Um Instante, Maestro!”) na Rádio Nacional, e também compositor. Sofreu com a perda do pai mais do que a própria nação.
Pra ele, escreveu “Naquela Mesa”, sucesso primeiro na voz de Elizeth Cardoso, em 1972, e depois na de Nelson Gonçalves, em 1974. Otto também regravou, no seu disco de 2009, “Certa Manhã Acordei De Sonhos Intranquilos”. Os versos são pura dor:
“Naquela mesa ele sentava sempre / E me dizia sempre o que é viver melhor / Naquela mesa ele contava histórias / Que hoje na memória eu guardo e sei de cor / Naquela mesa ele juntava gente / E contava contente o que fez de manhã / E nos seus olhos era tanto brilho / Que mais que seu filho / Eu fiquei seu fã / Eu não sabia que doía tanto / Uma mesa num canto, uma casa e um jardim / Se eu soubesse o quanto dói a vida / Essa dor tão doída, não doía assim / Agora resta uma mesa na sala / E hoje ninguém mais fala do seu bandolim / Naquele mesa tá faltando ele / E a saudade dele tá doendo em mim / Naquela mesa tá faltando ele / E a saudade ele tá doendo em mim”
A história curiosamente reservou uma falha: só existe uma única imagem de Jacob em movimento (é essa). Nenhum outro vídeo, nenhum filme. Só fotografias, as partituras, as gravações, a voz. E a imagem-homenagem que seu filho fez dele.
Sérgio morreu em julho de 1979, um ano após o que seria o sexagésimo aniversário de seu pai.
A música tinha motivos de sobra pra um choro.