REVISITANDO: LE BLOUSONS NOIRS – 1961-1962 (2007)

Foi no verão de 1959 que os franceses descobriram, estupefatos, os “jaquetas negras”. Em 24 de julho, vinte e cinco jovens de Porte de Vanves, em Paris, entraram em conflito com uma gangue na praça Saint-Lambert, vestindo jaquetas de couro, jeans e armados com correntes de bicicleta. Dias depois, um policial foi ferido em Cannes por conta de uma briga semelhante de gangues. Os jornais, em tom alarmista, começavam a dar destaque aos acontecimentos ferozes dessas lutas sangrentas de gangues. A polícia, desde 1958, pensava seriamente em simplesmente banir o rock’n’roll em vista de preservar a “tranquilidade pública”.

Os “jaquetas negras”, do francês “blousons noir”, nasceram dessa embalagem de delinquência dos primórdios do rock na França. Os centros urbanos começando a se inflar, a guerra da Argélia (de 1954 a 1962) reforçou o clima pesado da pobreza do pós-Segunda Guerra, os empregos não eram exatamente fartos, um cenário ideal pra rebeldia idealizada pelo cinema (James Dean e Marlon Brando como ícones) e pela música de guitarras que nem bem havia nascido. Assim, pelos cantos das cidades, os “jaquetas negras” aterrorizavam pessoas, eram adorados pelas garotas e exalavam rebeldia, sem consciência política, sem preocupação social, sem idealização de futuro. Energia adolescente explosiva é tudo o que definia essa turma.

Em 1961, um jovem de então dezoito anos, chamado Jean-Philippe Smet, assume o nome artístico Johnny Hallyday pra pelos próximos sessenta anos lançar perto de oitenta discos, vender mais de cem milhões de cópias e se tornar o maior ídolo do pop e do rock francês. Ele abala as estruturas. No começo, foi um choque. Até Hallyday, a indústria da música na França praticamente isolava os jovens, lidando apenas com orquestras de baile que tocavam o calipso, ragtime e twist, música pra pais e avós. Mas Hallyday apareceu com seu charme e ginga a la Elvis, fazendo música pra todo mundo que estava na puberdade ou deixando recentemente a fase.

Quando Hallyday tocava no Olympia, no início da década de 1960, não sobrava pedra sobre pedra: ele ganhava as manchetes, com titulões chocantes, deixando todo mundo um tanto de sobreaviso e sem saber como agir, porque essa expressão de violência juvenil em grupos e gangues era nova o suficiente pra deixar pais e governos totalmente tontos. Os “jaquetas negras” não colaboram nem um pouco: eram arruaceiros que não queriam só diversão – ou, por outra, o conceito de diversão deles era um tanto violento, daquele modo que sempre alguém saía seriamente ferido.

Marlon Brando, em “O Selvagem” (“The Wild One”, de László Benedek, 1953), era o espelho pra toda essa gente. O mesmo filme que décadas depois daria o nome do Black Rebel Motorcycle Club (o nome da gangue), naquele momento criava uma estética própria pra juventude francesa. O caso é que, além das jaquetas de couro e dos jeans surrados, os “motoqueiros” carregavam também correntes e outros armamentos, como canivetes, no intuito de provocar e chocar a sociedade.

Essa aura de rebeldia que nos dias de hoje pode soar romântica diante dos crimes em massa, das guerras santas, das violentas grandes cidades, da pobreza viril nas redes sociais, provocava também os guris pra tentar se destacar como seus ícones – Brando, Dean e Hallyday.

Quatro garotos abraçaram a ideia e se intitularam Le Blousons Noir, os “jaquetas negras”. Até hoje ninguém sabe muito sobre eles. Há pouco, por conta da reedição de 2007 de dois dos únicos três EPs que a banda lançou, descobriu-se que era formada por Clod (guitarra solo), Jo (guitarra), Did (bateria) e Sammy (vocal). Sem baixo. Diz a lenda que os quatro compraram os instrumentos pela manhã e gravaram tudo naquele mesmo dia. E eles não sabiam tocar nada.

A gravação é tosca, mas mostra bem o espírito faça-você-mesmo embalada por aquele cenário, antecedendo em quase duas décadas o punk estético inglês.

Os três EPs criados pelo quarteto são formados basicamente por versões francesas de músicas estouradas à época. No primeiro, “Youpi Rock” (de 1960), tem por exemplo “Tu Parles Trop”, de Hallyday, lançada naquele mesmo ano. Os outros dois são “Spécial Rock”, de 1961, e “Special Twist”, de 1962, também com quatro músicas cada um.

“Spécial Rock” traz versões de Gene Vincent (“Be-Bop-A-Lula”, que virou “Be Bop Alula”), Chuck Berry (“Johnny B. Goode”, que virou “Eddie Sois Bon”), Johnny Hallyday (“Depuis Que Ma Mome”) e Les Chaussettes Noires, outra banda de sucesso dos primórdios do rock francês (“Hey Pony”).

“Special Twist” vem com versões de duas canções do Les Chaussettes Noires (“Twist again” e “Cherie Oh Cherie”), Chats Sauvages, também pioneira, junto com a Les Chaussettes Noires (“Twist À St tropez”) e uma música própria, chamada “Les Fous Du Twist”.

Ambos os EPs foram lançados à época pelo selo Guilain e quarenta e cinco anos depois unidos na coletânea “Les Blousons Noirs 1961​-​1962”, lançada em 2007, pelo selo francês Born Bad Records, a partir dos originais. A foto da capa é a mesma foto que aparece na capa dos dois últimos EPs porque é a única foto existente da banda – se é que se acredite que seja a foto da banda (a capa do primeiro é um grafismo).

“Um longo ano separou a gravação dos dois EPs sem qualquer melhora sendo realmente perceptível. Os Blousons Noirs eram ruins e não davam muita importância, obviamente. O uso da mesma foto pra capa dos dois discos reforça a sensação de ‘nem-aí’ assumida como rock’n’roll”, conta a descrição oficial do Born Bad Records.

O que se ouve é uma banda de garagem, totalmente desafinada e com um baterista que erra o tempo e dois guitarristas que tentam ao menos reproduzir as músicas originais. É totalmente punk, faça-você-mesmo, embora o som se aproxime do yeah-yeah reinante naqueles primórdios.

“Podemos sempre reduzir o grupo a uma piada, a uma curiosidade, mas quer você goste ou não, Les Blousons Noirs são precursores do espírito punk e DIY. Pra que você entenda bem, lembre-se que será necessário ir até 1964 pra que Hasil Adkins lance sua ‘She Said’ (de onde o White Stripes tirou praticamente tudo), até 1965 pra que os peruanos dos Los Saicos venham à tona (se não conhece a história do Los Saicos, recomenda-se fortemente ler este artigo), e até 1966 pra que o Legendary Stardust Cowboy nos entregue sua ‘Paralyzed'”, diz o texto da Born Bad.

“Pra se tornar um grupo bastante ‘cult’, o quarteto só teve que permanecer no anonimato. Nossas investigações foram, portanto, inúteis pra tentar identificar esses roqueiros. Nós só sabemos que eles não têm nada a ver com o grupo homônimo que serviu como banda de apoio a Tony March, o Elvis francês. De fato, a única informação sobre a identidade do Blousons Noirs vem de Marc Liozon (editor-chefe do fanzine “The 60s Club”), que encontrou uma cópia do segundo EP autografado pelo grupo pra algum fã”, encerra o texto oficial.

O mistério dessa banda única permanece e se fortalece com o passar dos anos. A rebeldia e delinquência dos “jaquetas negras” ficou amenizada com o tempo não só porque o mundo mudou (e no sentido da violência, pra pior), mas também porque quatro rapazes anônimos se apropriaram do termo pra produzir uma obra especial, que antecipou o rock de garagem e até mesmo o punk. O espírito jovem do rock, que muitos dão como morto e enterrado, vive ecoando e estraçalhando nas notas pessimamente executadas do Les Blousons Noirs.

1. Be Bop Alula
2. Eddie Sois Bon
3. Depuis Que Ma Mome
4. Hey Pony
5. Twist Again
6. Chérie Oh Chérie
7. Twist A St. Tropez
8. Les Fous Du Twist

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