REVISITANDO: M/A/R/R/S – PUMP UP THE VOLUME (1987)

Pode uma banda que jamais lançou um disco – e, em verdade, lançou apenas um single em toda a sua carreira – ser relevante? São casos raros, raríssimos, mas acontece. O M/A/R/R/S é um desses casos.

O nome é acronismo com as iniciais de Martyn Young, Alex Ayuli, Rudy Tambala, Russell Smith e Steve Young.

Martyn e Steve são irmãos e haviam chamado atenção no Colourbox, grupo da 4AD, que experimentava com samples, soul, dub, reggae, disco, eletrônica. A dupla lançou dois EPs e um disco cheio entre 1982 e 1987.

Já Alex Ayuli e Rudy Tambala fizeram seus nomes no A.R. Kane, uma banda experimental, anunciando o dream pop que o Beach Fossils, DIIV, Beach House e tantos outros ficam raízes hoje, com guitarras limpas, viajantes, mas com o adorno de batidas africanas – não por menos, afinal Ayuli tem ascendência nigeriana e Tambala, do Malawi (leia a recente entrevista de Tambala pro blogue Vox).

Vale ouvir “Crazy Blue”, faixa que abre o primeiro disco da banda, “69”, de 1988:

E vale ouvir a brilhante barulheira do primeiro single do grupo, “When You’re Sad”, lançado em 1986 (alguém pensou aí em My Bloody Valentine?):

E Russell Smith tocava frequentemente com o A.R. Kane, além de ter fundado o Terminal Cheesecake, uma banda psicodelia pesada, que lançou cinco discos entre 1989 e 1994.

Pra se ter ideia do caminho que o Terminal Cheesecake trilhava, é só ouvir “Unhealing Wound”, single do terceiro disco, “Angels In Pigtails”, de 1990:

O que uniu três sonoridades tão distintas num projeto que impulsionou a house music no Reino Unido – e contribuiu pra fomentar a cena nos clubes estadunidenses – é um daqueles mistérios intrigantes pra se investigar.

Os anos de 1987 e 1988 foram determinantes pra utilização de samples na música de amplitude comercial (colagens e loopings já haviam sido bem usadas décadas antes, de Beatles a Kongos – o Guiness Book diz que o single “He’s Gonna Step on You Again”, de John Kongos, lançado em 1971, foi o primeiro a se valer de um sample, embora o próprio John diga que na verdade era um tape loop, prática disseminada à época).

E você conhece a música, regravada por gente como Def Leppard e Happy Mondays (com o título “Step On”):

Mas na metade final da década de 1980, nomes como Bomb The Bass (alias do londrino Tim Simenon), com “Beat Dis” usando samples de “Looking For The Perfect Beat”, do Afrika Bambaataa, a Ennio Morricone (tirado de “Três Homens Em Conflito”); S’Express e seu “Theme from S’Express”, com mais de uma dezena de trechos de outras obras; e, principalmente, o remix endiabrado do Coldcut pra matadora “Paid In Full”, de Eric B & Rakim; expandiram o prática em arrebatadores sucessos nas pistas da Nova Zelândia à Islândia, de Los Angeles a Tóquio, passando pelo Brasil, pela Itália e por quase todo o mundo. Ninguém estava imune.


A prática é bem determinada por Simenon em “Beat Dis”, que avisa no início: “the names have been changed to protect the innocent”. O artista assume a obra dos outros e os isenta de responsabilidade. Uma prática que mais tarde a indústria tratou pelo nome mais cruel de “roubo”.

“This is a journey into sound, a journey which along the way will bring to you new colour, new dimension, new values – and a new experience, stereophonic sound”: esse é outro sample que aparece tanto em “Beat Dis”, como na versão do Coldcut pra “Paid In Full”. É o resumo do que se pretendia: uma viagem pelos sons da humanidade.

O trecho é tirado da abertura da compilação de 1958, “A Journey Into Stereo Sound” (veja aqui), numa faixa chamada “Train Sequence”, na qual o ator inglês Geoffrey Sumner, após a passagem de um trem, diz a frase.

Summer morreu em 1989, a tempo de ouvir sua voz ecoando por aí nas rádios do mundo. Sua frase em “Train Sequence” virou sample em mais de cinquenta obras.

O disco na íntegra você pode ouvir aqui – “Train Sequence” é a faixa inicial:

As amostras (samples) de outras obras inseridas numa terceira acabaram projetando nomes inusuais ao mundo, como o de Ofra Haza, a cantora israelense (morta aos 42 anos, por conta da AIDS) que teve trechos de sua “Im Nin’alu” usada de forma surpreendente pelo Coldcut em “Paid In Full” e, em seguida, em outras obras.

A canção, do disco “Shaday” (1988), é um poema em hebreu de autoria de R. Shalom Shabazi, datado do século XVII, cujo trecho sampleado fala que “mesmos se os portões dos ricos estiverem fechados, os portões do Céu jamais se fecharão”. Ou seja, tá tudo liberado.

Em suma, “this is a journey into sound”…

Ofra Haza acabou também num dos remixes de “Pump Up The Volume”, do M/A/R/R/S, mas não no original. Os irmãos Young juntaram pra sua canção mais de 250 amostras e os remixes seguintes acresceram a conta ainda mais.

Antes disso, eles chegaram a contribuir com alguns artistas da 4AD, como This Mortail Coil, Dead Can Dance e até o Cocteau Twins, mas tinham uma amplitude sonora incrivelmente mais ampla. O próprio título, “Pump Up The Volume” vem de uma canção de Eric B & Rakin, “I Know You Got Soul” (ouça aqui), nada a ver com o ambiente da 4AD.

Mas eles não tinham lá muita fluência na técnica (quem tinha à época?). Então, chamaram os DJs Chris “CJ” Mackintosh e Dave Dorrell pra cuidar das amostras. Mackintosh disse que foi “realmente muito rápido fazer o trabalho. Eles me ligaram de manhã, fomos ao Blackwing Studios, ali na London Bridge, juntei todos os samples naquele mesmo dia e ainda levei duzentas libras pela trabalho”.

Comandando a produção e a engenharia de som, estava John Fryer, do This Mortail Coil, amigão dos irmãos Young, e que já havia trabalhado com o Cocteau Twins, Depeche Mode (no disco de estreia, “Speak & Spell”) e Peter Murphy.

A ideia de juntar esse time, Colourbox, A.R. Kane, Fryer e Terminal Cheesecake, foi de um dos criadores da 4AD, Ivo Watts-Russell, também fundador do This Mortail Coil.

Martyn Young estava desiludido com o negócio da música nessa época. Achava injusta a posição nas paradas do primeiro disco do Colourbox, lançado em 1985. Ele achava que havia vendido o suficiente pra galgar posições maiores nas paradas – o que, comercialmente, impulsiona ainda mais as vendas. Watts-Russell queria que Young seguisse estimulado, como disse Fryer: “então, Ivo planejou colocar o Colourbox e o A.R. Kane juntos, como um incentivo pra Martyn voltar a compor, e daí surgiu ‘Pump Up The Volume’, mesmo que a faixa não tenha lá muito do A.R. Kane”.

Mas tinha, sim. Pouquíssimo, mas tinha. o A.R. Kane gravou as poucas guitarras da música, em overdub (uma sobreposição de gravação adicional), quando Fryer não estava presente. “Eu fazia coisa demais à época”, disse.

O processo foi meticuloso pra Martyn, que ficou debruçado por dias até acertar a batida exata da música. Ao contrário de “Paid In Full”, cuja força está baseada na linha de baixo, “Pump Up The Volume” tinha um grave forte e um outro andamento. Só depois é que veio a linha de baixo e, então, a participação relâmpago dos DJs convidados, com as amostras e o scratches. O trabalho avançava como se Fryer estivesse numa sala de aula aprendendo, enquanto o indeciso Martyn tirava e incluía efeitos, amostras e camadas. “Ao fim, não se pode dizer exatamente o que foi e o que não foi usado no corte final”, disse Fryer.

O single tinha duas canções: “Pump Up The Volume” e “Anitina (The First Time I See She Dance)”, composta basicamente pela parte A.R. Kane do M/A/R/R/S, com mais guitarras e um corte de bateria feito posteriormente pelos Young.

Ambas as bandas raramente se encontravam em estúdio, de modo que o M/A/R/R/S de fato jamais existiu ou podia existir. “Anitina”, com as guitarras e a leveza quase dream pop, tinha mais a ver com essa possível junção Colourbox + A.R. Kane: é um dub guitarrístico, por assim dizer.

Entretanto, em 24 de agosto de 1987, quando a 4AD lançou o disquinho, os ouvidos se viraram rapidamente pra “Pump Up The Volume”. A música logo alcançou o primeiro lugar nas paradas britânicas (e de outros países), feito único na história do catálogo da gravadora.

O sucesso meteórico da canção chamou atenção dos donos dos direitos das músicas sampleadas. Os rappers e músicos de menos expressão não estavam ligando até então com a “apropriação” de suas obras. Mas o trio Stock Aitken Waterman (SAW) resolveu encrespar pelo uso de um trecho de “Roadblock”, o que abriu as portas pra que de repente um monte de processos fossem aventados contra o M/A/R/R/S. Nos Esteites, os donos dos direitos das músicas de James Brown estavam só esperando o single ser lançado pra cair em cima.

O resultado foi um novo corte da música pra ser lançado nos Esteites e um novo ainda pra ser tocado nas rádios inglesas. O grupo queria evitar os problemas ao máximo, agora que a música vendia e tocava como nunca (aqui tem uma lista de samples usados em cada país).

O curioso é que o estopim veio com uma entrevista boba do DJ convidado Dorrell dizendo que havia usado, entre outras, um trecho de “Roadblock”. Mas esse trecho era tão imperceptível, que SAW jamais saberia que estava em “Pump Up The Volume” se não fosse pela declaração de Dorrell.

Apesar do forte e imediato impacto criado pela canção na cultura pop, Alex Ayuli e Rudy Tambala deixaram bem claro que jamais voltariam a trabalhar com o Colourbox, e cobraram mais de cem mil libras de direitos pela obra.

O M/A/R/R/S, vale repetir, nunca de fato existiu e jamais seria possível realmente existir da forma que foi pensado.

O fato é que com apenas uma música, o grupo conseguiu o que muito artista busca incessantemente: deixar sua marca na história.

Ouça “Anitina”:

O vídeo oficial de “Pump Up The Volume” (com o corte pras rádios):

E o corte pensado por Martyn Young:

1. Pump Up The Volume
2. Anitina (The First Time I See She Dance)

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