Mnemônica é um auxiliar de memória, por assim dizer. São métodos que ajudam o cérebro a guardar dados que não possuem ligação pessoal e, por isso, seriam mais difíceis de serem memorizados (alguns exemplos corriqueiros).
A palavra deriva do grego antigo “mn?monikos”, que significa “da memória”, e está relacionada à Mnemosyne, a deusa da memória na mitologia grega – e ambas vêm de “mn?m?”, que quer dizer simplesmente “memória”.
Mnemonistas são aquelas pessoas capazes de memorizar grandes quantidades de dados pouco usuais, como listas telefônicas, passagens inteiras de livros, diálogos completos de filmes, e coisas tão absurdas quanto inúteis em muitos casos.
Feito essa introdução, é possível entender o que passava na cabeça de Mark Debyshir e William (Bill) Sharp, quando criaram a Mnemonist Orchestra, no final da década de 1970, em Fort Collins, Colorado, Esteites.
A Mnemonist Orchestra não é formada por mnemonistas e isso pouco importa, na verdade. O coletivo transformava em música a ideia dos dados aleatórios organizados, agrupados, impessoais, intercalando camadas e mais camadas de sons muitas vezes sem sentido.
Em 1979, a banda lançou seu primeiro – e único – disco, “Mnemonist Orchestra”, pelo seu próprio selo, o Dys (estampando na capa, orgulhosamente, o selo “Dys 01”). Era uma edição limitada de apenas cem cópias.
A experiência proposta pelo grupo, numa época em que o auge da irracionalidade, segundo a ótica conservadora, eram aqueles malucos de cabelos espetados e roupas rasgadas, com músicas simples, gritadas e ingênuas, chamados de punk, era virar a cabeça do ouvinte pela não-compreensão. Os punks chutavam o balde, mas queriam ser ouvidos, e estavam bem assimilados pelo sistema que acreditava-se eles queriam destruir. A Mnemonist Orchestra tinha um intento mais “cabeça”, como se diria hoje, e fazia arte de vanguarda, ou avant garde.
Soa pretensioso e não há como negar: era um troço bastante pretensioso. E interessante.
O coletivo tinha dois vértices: o musical e o visual. Havia músicos, artistas plásticos e até cientistas tentando ver o que acontecia se “bombardeassem as crianças intensamente com tecnologia”.
A ideia era fazer música eletrônica, mas não como se conhece hoje – e já bastante difundida à época. O lance era usar colagens e manipular eletronicamente os instrumentos dispostos em camadas, sem aparente ligação entre eles. Cada membro tocava uma passagem, que era disposta sobre a anterior e assim por diante.
O resultado varia entre o jazz (principalmente em “Corrosive On Contact”), as ambiências eletrônicas, o noise puro, o improviso livre e o drone. É experimentação total.
Em “Mnemonist Oschestra”, esses grupos estão claramente divididos nos créditos. Os instrumentistas, capitaneados por Bill Sharp (piano e guitarra) na produção, arranjo e gravação das fitas, são Steve Scholbe (saxofone alto), Dave Narsh (baixo), Dave Calvin (baixo), Nicki Relic (piano modificado), Steve Chaffey (bateria, percussão, garrafas e tubos), John Herdt (guitarra), Dave Mowers (trombone e percussão), Hugh Ragin (trompete e percussão), e Randy Yeates e Torger Hougen (vocais e várias peças que eles chamam de “instrumentos”, mas que fazem qualquer barulho). Mark Derbyshire faz a engenharia de som – ou seja, juntou tudo e deu a cara final à coisa, junto com Sharp.
Na parte visual, há a capa e o conceito de Sharp, a fotografia de Bruce McGregor e a arte de Yeates e Hougen).
O resultado final apresenta quatro músicas que totalizam pouco mais de cinquenta minutos e meio. A ordem delas também é importante, dando uma leitura única, de modo que é praticamente impossível destacar uma ou outra, tal a unidade que a obra apresenta.
Mas não é um disco fácil de ser ouvido. Não é um álbum que oferece aprazabilidade. A Mnemonist Oschestra, juntando sons intencionalmente desconexos, sugere o oposto das canções pop, que são fáceis de guardar, feitas pra memorização ágil. Aqui, a intenção é pedir um esforço do ouvinte, que se embarcar no conceito, precisaria de uma mnemônica qualquer pra guardar essas canções no seu ideário. Não é fácil – e a banda faz de tudo pra que o esforço aconteça.
Ouça “Imput”:
Após o lançamento do disco, a Mnemonist Orchestra se dividiu em dois pedaços. A parte musical criou a Biota (liderada por Sharp), uma banda bastante prolífica na criação, com onze discos cheios no currículo, o mais recente de 2012, “Cape Flyaway”. A parte visual criou a Mnemonists, uma banda com menos lançamentos, mas dois deles bastante importantes (mais até do que os lançados pela Biota, o que é irônico): “Horde”, de 1981; e “Gyromancy”, de 1984. “Some Attributes Of A Living System”, de 1980, é tido como um “segundo disco” da Mnemonist Orchestra. E o quarto disco da Mnemonist é, de fato, uma obra em parceria com a Biota (um split), “Musique Actuelle 1990”, em 2004.
Há aqui, porém, uma confusão. A Mnemonists é quase a mesma espinha dorsal da Mnemonist Orchestra (Sharp e Derbyshire, inclusive). Em 1987, o grupo virou Biota de vez, mas apenas com Sharp. O resto do lado visual ficou apenas nas artes visuais, fazendo inclusive os filmes, capas e artes pro Biota.
O todo é de uma obra inigualável na criatividade e na experimentação. Definitivamente, pra ficar na memória de quem se lembra vez por outra de que música também é arte.
Ouça “Vulnerable, Than Functional”
“Corrosive On Contact”
“Stasis”
LADO A
1. Input
2. Vulnerable, Than Functional
LADO B
1. Corrosive On Contact
2. Stasis