“Chance Meeting On A Dissecting Table Of A Sewing Machine And An Umbrella”. Só o título já vale a curiosidade, mas o primeiro disco do Nurse With Wound é interessante pra além da própria música.
Steven Stapleton é daquelas figuras excêntricas que a sociedade deveria agradecer por esbarrar na arte.
A história é bem conhecida e propagada: em 1979, ele trabalhava como pintor daquelas placas de rua, do tipo “vende-se ouro”, em Londres. Um dia, foi chamado pra pintar a fachada do BMS Studios, um estúdio pequeno onde trabalhava o engenheiro de som Nick Rogers.
Stapleton e Rogers ficaram bons amigos. Rogers estava de saco cheio dos trabalhos publicitários que o estúdio fazia e confidenciou a Stapleton que gostaria de ousar e trabalhar com bandas experimentais. Stapleton, claro, aceitou na hora o que entendeu ser um convite, dizendo que tinha uma banda tal como Rogers queria.
Mas era mentira. Só que ao ouvir que Stapleton tinha uma banda, Rogers se antecipou e ofereceu uma período no final de semana seguinte pra que a banda de Stapleton usasse os estúdios gratuitamente, gravando tudo. Stapleton teve, então, que correr atrás da tal banda de uma hora pra outra. Chamou os amigos John Fothergill e Heman Pathak, não sem antes informar que os dois deveriam comprar seus próprios instrumentos.
Fothergill ficou com uma guitarra e Pathak, com um órgão.
Embora os dois fossem vasculhadores de obscuridades da música alternativa e “estranha”, nenhum deles, nem mesmo Stapleton, sabia tocar instrumento algum, de modo que assim que o estúdio foi fechado pra eles, Rogers percebeu onde havia se enfiado.
Da guitarra, Fothergill só conseguia tirar esguichos e grunhidos aleatórios, utilizando parafusos, pedaços de ferro. Pathak usou os teclados (inclusive um piano e um sitetizador do estúdio) pra dedilhar notas sem sentido. Stapleton fazia o máximo de barulho que conseguia com ferramentas, teclado, brinquedinhos e fitas pré-gravadas.
Rogers, na primeira “música”, “Two Mock Projections”, tenta salvar a pele tocando o que chama de “guitarra comercial”, que é na verdade um solo tão tosco e interminável quanto macabro e descontextualizado. A soma das duas camadas dá um resultado bastante esquisito.
Ouça “Two Mock Projections”:
Quando “Chance Meeting On A Dissecting Table Of A Sewing Machine And An Umbrella” foi lançado, pelo selo United Dairies, criado especialmente pro lançamento, a capa trazia a informação de que os músicos tocaram guitarra, órgão, percussão, violoncelo, piano, flauta, sintetizador “etcetera”.
O disco foi gravado numa sessão apenas, que durou seis horas. O resultado foram três músicas, duas no lado A e uma impressionantemente anárquica e experimental no lado B, com pouco mais de vinte e oito minutos, “Blank Capsules Of Embroidered Cellophane” (que você ouve abaixo na versão editada de dezesseis minutos):
Apesar do afastamento total de qualquer norma artística, Stapleton não era um analfa artístico. Ele sabia o que queria. Rogers também. O Nurse With Wound nasceu anárquico, de uma mentira, mas tinha fundamento no arsenal de referências de Stapleton.
Tanto que o título da obra, “Chance Meeting On A Dissecting Table Of A Sewing Machine And An Umbrella”, vem da citação de Isidore-Lucien Ducasse, o Conde de Lautréamont, poeta uruguaio, de Montevidéu, que fez fama na França, no famoso “Os Contos De Maldoror” (Les Chants De Maldoror, FRA, 1869).
Faz sentido. A obra é considerada um dos nascedouros da literatura fantástica, cheia de morbidez, crueldade, estupidez e uma grande sorte de sordidez humana. É considerada um clássico. Stapleton imaginou-se lendo a obra ao criar sua música, embora a música de “Chance Meeting On A Dissecting Table Of A Sewing Machine And An Umbrella” não tenha sido controladamente criada.
Pra capa, Stapleton usou uma revista sadomazô, de modo que o disco acabou censurado. Apesar disso – ou talvez por conta disso – as quinhentas cópias numeradas do disco esgotaram-se rapidamente.
Uma dessas cópias foi parar em mãos bastante interessantes. Uma delas foi de Tim Gane, do Stereolab, que ficou impressionado com o disco. O Stereolab e Stapleton trabalharam juntos no EP “Crumb Duck”, de 1993.
Porém, o EP foi um “prêmio de consolação”. Gane queria mesmo era que Stapleton produzisse o primeiro disco do Stereolab, “Peng!”, de 1992, mas o cabeça do Nurse With Wound achou o som da banda anglo-francesa “muito rock”.
Stapleton continuou trabalhando. Fothergill e Pathak saltaram fora do barco poucos anos depois e não chegaram a participar do clássico do industrial “Homotopy To Marie”, de 1982. O Nurse With Wound gravou e lançou através da United Dairies (e outros selos) mais de sessenta discos e EPs e apareceu como convidado em outras dezenas de discos. Os mais recentes lançamentos são (assim mesmo, no plural) de 2013.
Steve Stapleton vive recluso em sua casa na Irlanda e pouco sai de lá, a não ser pra gravar com seu mais duradouro parceiro, o engenheiro de som inglês Colin Potter, quando nem isso. O processo mais comum é Stapleton gravar o que quer em sua casa, mandar o material pra Potter e dizer o que o amigo tem que acrescentar e como deve mixar o trabalho. Já experimentou com o folk, com ritmos latinos, mas principalmente com o livre-improviso.
Ele raramente faz shows ou dá entrevistas.
Stapleton nasceu em 1957 e tinha entre 21 e 22 anos quando mentiu e, por conta dessa mentira, gravou e lançou “Chance Meeting On A Dissecting Table Of A Sewing Machine And An Umbrella”, pra que se pudesse afirmar, então, que a música nunca mais seria a mesma.
LADO A
1. Two Mock Projections (6’20”)
2. The Six Buttons Of Sex Appeal (13’13”)
LADO B
1. Blank Capsules Of Embroidered Cellophane (28’19”)
As reedições a partir de 2001 incluem uma quarta canção, “Stain, Crack, Break” (15’16”), que nada mais é do que o poeta David Tibet declamando/lendo uma lista escrita num papel com os artistas que influenciaram a banda. Artistas de qualquer área.
A faixa foi gravada por Collin Porter.
Dá pra ouvir a reedição na íntegra aqui (no Bandcamp oficial do Nurse With Wound):