REVISITANDO: PRIMAL SCREAM – COME TOGETHER (1990)

O dia era 11 de agosto de 1965. Marquette Frye, um negro estadunidense de 21 anos, voltava pra casa em seu carro, com seu irmão, Ronald. Foi parado pelo policial Lee Minikus, que tinha convicção de que Frye estava alcoolizado. A abordagem foi agressiva, como era praxe naqueles tempos (e continua a ser hoje em dia).

Ronald, vendo que o caldo ia entornar, correu até a casa deles, ali perto, e trouxe sua mãe, pra tentar argumentar com os policiais de que não tinha vagabundo por ali. Minikus não quis saber. O tumulto foi aumentando, assim que o reforço requirido por Minikus chegou. Os vizinhos começaram a se aglomerar em torno dos policiais que insistiam em prender Marquette.

Os policiais começaram a ser alvos de objetos atirados pelos locais cada vez mais irritados com a abordagem discriminatória. A “solução” encontrada por Minikius e seus companheiros de farda foi prender os Frye – irmãos e a mãe. A situação, claro, piorou, de modo que pelos dois dias seguintes, o distrito de Watts, nos subúrbios de Los Angeles, onde rolou o caso, acabou presenciando o que ficou conhecido como “Watts Riots”, que resultou em trinta e quatro mortes, mais de mil feridos, mais de três mil presos e quase mil edificações queimadas, saqueadas, invadidas ou destruídas.

Os tumultos só foram superados em 1992, na mesma Los Angeles, quando o tribunal do júri considerou inocentes os três policiais que espancaram o também negro Rodney King.

Por conta dos “Watts Riots”, sete anos depois, em 1972, a Stax Records organizou um grande festival com seus artistas, o Wattstax. O festival rolou no Los Angeles Memorial Coliseum, em 20 de agosto. Foram escalados nomes como Albert King, Rufus Thomas e Isaac Hayes.

Entre eles, estava o reverendo Jesse Jackson, já famoso defensor dos direitos humanos (e futuro senador, na década de 1990), que fez um dos mais famosos discursos da sua carreira.

Logo aos três minutos de evento, com o estádio lotado, ele citou um poema desconhecido à época, chamado “I Am – Somebody” e escrito na década de 1950 pelo reverendo William Holmes Borders, clamando o público a recitar algumas passagens: “I am… Somebody… I may be poor… But I am… Somebody… I may be on welfare… But I am… Somebody… I may be unskilled… But I am… Somebody… I am… Black… Beautiful… Proud… And must be respected… I must be protected…”. O público respondia e reproduzia cada verso com os punhos cerrados pro alto.

Mas é a introdução ao poema que acabou ainda mais famosa, imortalizada no disco que foi lançado com as gravações ao vivo do festival, o “Wattstax: The Living Word” (de 1972), e com o filme-documentário (de 1973 e indicado ao Globo de Ouro do ano seguinte na categoria), dirigido por Mel Stuart.

Jesse Jackson, no improviso, começava até de maneira simplista: “This is a beautiful day… It is a new day… It is a day of black awareness, it is a day of black people taking care of black people’s business… We are together, we are unified… And all in accord… Because when we are together we got power… And we can make decisions… Today on this program you will hear gospel, and rhythm and blues, and jazz. All those are just labels. We know that music is music…”; e seguia com suas tradicionais voadoras poéticas: “All of our people have got a soul, our experience determines the texture, the tastes and the sounds of our soul. We may say that we are may be in the slum but the slum is not in us. We may be in the prison, but the prison is not in us”.

Dois anos antes, em 1971, nas discussões primárias das eleições à presidência dos Esteites, Ossie Davies faria uma das suas sentenças mais famosas, enquanto ativista dos direitos humanos. Antes de se tornar um famoso diretor, roteirista e produtor de Hollywood, Davis foi amigo pessoal de Malcolm X e companheiro de luta Martin Luther King, tinha larga jornada contra o racismo em seu país.

“Eu apelo a vocês, candidatos que representam o povo negro: parem de papear e nos deem um plano de ação. Nos deem os 10 Mandamentos do povo negro – tão simples e poderosos que poderíamos carregá-los em nossos corações e em nossas memórias e sentir a afirmação de que apesar de tudo nós temos um plano simples, moderno e inteligente que deve ser realizado no decorrer do tempo. Mesmo se todos os nossos líderes, um a um, sucumbirem na batalha, alguém há de se levantar de novo! Alguém há de se levantar e dizer: ‘nossos líderes morreram enquanto estavam na página três do plano, agora que o funeral se findou, vamos seguir em frente com a página quatro… Nós precisamos dos nossos líderes agora, dos nossos candidatos, que eles pensem nos nossos problemas, que eles pensem nas possíveis soluções, que eles codifiquem as consequências e apresentem pra nós, o povo, pra que possamos ratificar o que eles imaginaram como plano de ação. Agora, precisamos de um plano porque estamos diante de uma perigosa, embora estimulante, encruzilhada da história. (…) Nós nos tornamos uma força política e é por isso que estamos aqui hoje. Esse é um exercício de poder. O nome do jogo é poder. Se você não tá jogando poder, você tá no lugar errado. A solução é nos preparar pra lidar com uma sociedade automatizada, pra lidar com uma economia computadorizada (…). Então, eu diria que nossa única saída é a revolução – pra mudar a sociedade em todos os termos que pudermos, antes que a sociedade decida por ela, porque nós somos dispensáveis, negros e pobres e rejeitados e desprezados, e a sociedade prefere nos ver eliminados de vez, do que achar a solução de uma maneira racional”.

Veja, Bobby Gillespie, um escocês que tinha dez anos em 1972, quando os dois discursos já faziam parte da história, não tem nada de negro, nem pode alegar ter sofrido quaisquer das barbaridades de cunho racista que essas pessoas sofreram e sofrem. Com vinte anos, em 1984, juntou-se ao furacão Jesus & Mary Chain “tocando” bateria em pé e participando dos insanos shows-relâmpagos da banda. Em 1986, quando deixou o grupo dos irmãos Reid pra se dedicar exclusivamente ao seu Primal Scream, pôde dar vazão à sua adoração pelos anos 1960 – de Rolling Stones, Stooges e girls bands, à música gospel e soul estadunidense.

Gillespie era amigo de escola de Alan McGee, o criador da Creation Records, e foi McGee que o apresentou à acid house. Gillespie, que queria dar uma reviravolta no som e na performance do Primal Scream, ficou entusiasmado com as possibilidades. Numa rave, entre uns e outros aditivos, ele e o guitarrista Andrew Innes conheceram o DJ Andrew Weatherall, o cara que daria vida à maior obra do grupo, “Screamadelica”, de 1991.

O primeiro trabalho de Weatherall foi retrabalhar “I’m Losing More Than I’ll Ever Have”, lançada originalmente no segundo disco, “Primal Scream”, de 1989. O retrabalho resultou na virada de chave mais importante da carreira de Gillespie. “I’m Losing More…” virou simplesmente “Loaded”, o maior sucesso do Primal Scream.

O que Weatherall fez foi pegar um trecho do diálogo de Peter Fonda em “Os Anjos Selvagens”, filme de 1966, dirigido pelo grande Roger Corman (veja aqui), além do refrão “I Don’t Want To Lose Your Love”, da música de mesmo título das The Emotions (veja aqui), e colocar por cima da batida reformulada de “I’m Losing More…” (a batida veio dessa canção pop bastante conhecida).

O discurso de liberdade juvenil proferido por Fonda (“We wanna be free, we wanna be free to do what we wanna do / And we wanna get loaded and we wanna have a good time / That’s what we’re gonna do, no way, baby, let’s go / We’re gonna have a good time, we’re gonna have a party”) foi um caminho aberto pro que Gillespie tinha em mente: tratar sobre… liberdade.

Isso incluía, claro, toneladas de drogas, principalmente ecstasy, mas também um pouco de, digamos, “consciência social”.

“Loaded” foi lançada em fevereiro de 1990, num single quase didático, que continha a faixa-título e a faixa-embrião dela, além de uma estranha no ninho, a versão ao vivo de “Ramblin’ Rose”, do MC5.

Mas daí a brincadeira cresceu. “Screamadelica” viria a surgir no mercado só em 1991, mas agosto de 1990 daria outra amostra da genialidade da união entre o rock do Primal Scream e a eletrônica ácida de Weatherall. Era “Come Together”, o single seguinte.

A versão original (ou a radio edit) tinha quatro minutos e era uma viagem dançante de amor e drogas: “Kiss me, won’t you won’t you kiss me / Won’t you won’t you kiss me / Lift me right out of this world / Trip me, won’t you, won’t you trip me? / Won’t you, won’t you trip me? / Lift me ride me to the stars / I’m free you’re free / I want you to touch me / Come touch me / Now it’s all too much / All too much”.

Mais uma vez veio a mão de Weatherall, que subverteu a música, com samplers, batidas surrupiadas e, dessa vez, com um climão dub e house. O produtor pegou trechos das falas de Ossie Davis e Jesse Jackson citadas no começo deste artigo, colocou numa batida espaçada, com um baixo espacial, e repaginou toda a canção.

“Come Together”, assim como “I’m Losing More Than I’ll Ever Have”, virou outra coisa.

Com mais de dez minutos, o ouvinte é transportado, à base de ecstasy, pra toda problemática racista (não só estadunidense, claro), com Jackson brindando-nos com suas setenças: “This is a beautiful day… It is a new day… We are together, we are unified… And all in accord… Because when we are together we got power… Today on this program you will hear gospel, and rhythm and blues, and jazz. All those are just labels. We know that music is music…”, sublinhando repetidamente o “gospel”. E com Davis sendo direto: “the name of the game is power, if you ain’t playing power, you are at the wrong place”.

A história, em outras palavras, é: “juntos somos fortes, mas temos que atuar politicamente, nas entranhas do sistema”. Nada mais atual.

O remix de “Come Together” não conseguiu a mesma força comercial que “Loaded”, já que era menos acessível na temática, na lenta sonoridade (parece que a música nunca engrena “pras pistas”, fica só na “intenção”, a batida é praticamente só o bumbo) e na duração (rádios parecem ainda hoje odiar músicas com mais de três, quatro minutos, salvo exceções).

Mesmo assim, o Japão, sempre esperto, lançou um EP chamado “Come Together” unindo o EP com as três músicas de “Loaded”, mais a versão original e remixes de “Come Together”. Eram, afinal tudo a mesma coisa, o mesmo DNA musical, a mesma lógica.

“Loaded” alcançou o número 16 nas paradas britânicas. “Come Together”, o número 26. “Screamadelica”, o número 8 e foi disco de platina (quase quatro milhões de cópias mundo afora), além de ganhar o Mercury Prize de 1992.

E um pedaço da história, ocorrido na virada dos anos 1960 pros 70 nos Estados Unidos, virou a página da música pop britânica. O rock abraçava com força o “gospel, o rhythm, o soul, o blues, o jazz” e as pistas, pra criar um dos seus grandes marcos. “Screamadelica” ainda é a obra-prima do Primal Scream.

(original)

Lado A
Come Together (Terry Farley mix)

Lado B
Come Together (Andrew Weatherall mix)

(versão japonesa)

Lado A
1. Come Together (7″ Version)
2. Loaded (7″ Version)
3. Come Together (Farley Mix)
4. Loaded (Weatherall Mix)

Lado B
1. I’m Losing More Than I’ll Ever Have
2. Ramblin’ Rose (Live)
3. Loaded (Farley Mix)

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