Foi em 1971 que o guitarista Manuel Göttsching, o baterista Klaus Schulze e o baixista Hartmut Enke se reuniram como Ash Ra Tempel, em Berlim, Alemanha, após passagem por outras bandas. No mesmo ano, lançaram o disco de estreia homônimo, resultando no que ficou conhecido por alguns críticos como o “mais potente disco de krautrock da história”.
Schulze é bem conhecido por ter feito parte da formação embrionária do Tangerine Dream, embora seja Göttsching, um guitarrista técnico, de blues, que seja o nome do Ash Ra Tempel. O disco foi gravado durante o mês de março de 1971 e lançado meses depois, em junho, pela Ohr.
Mesmo após a saída de Schulze, assombrosamente insano na bateria do disco de estreia, Göttsching e Enke seguiram com um ótimo disco no ano seguinte, “Schwingungen”, fortalecendo as matizes do krautrock, até que 1972 viria pra dar frutos à loucura do som da banda que se refletiriam por anos e anos, principalmente em 1973, quando o Ash Ra Tempel lançou dois trabalhos que algumas pessoas consideram seus mais inventivos, “Join Inn” e “Starring Rosi”.
Questão de gosto, por certo, porque o estopim da potencialização da loucura sonora de Göttsching (transformada em genialidade nos anos 1980, com suas incursões pela música eletrônica, de acordo com os entendidos) tem um nome – que, por sinal, diz tudo: Timothy Francis Leary.
Embora o termo “guru” seja poeticamente bem associado a seu nome, Leary era psicólogo formado e professor em Havard quando começou suas experiências com LSD. Por suas pretensões, digamos, científicas, acabou tendo a vida virada ao avesso.
Acabou expulso da universidade, foi preso diversas vezes por porte de maconha, virou bode expiatório da administração Richard Nixon em debelação da contracultura, e fugiu pra Europa, quando já era famoso pela turma que o admirava, incluído aí o casal John Lennon e Yoko Ono. Lennon, inclusive, escreveu “Come Together”, a música de abertura do “Abbey Road”, inspirado pelo tema da campanha de Leary ao governo da Califórnia, “Come together, join the party” (sim, Leary tentou o cargo, mas, claro, não se deu bem na eleição, já que foi sentenciado a vinte anos de prisão em 1970 – Ronald Reagan foi reeleito naquele ano).
Não era loucura, pois. Era genialidade. Uma das provas disso é que ao ser submetido aos testes psicológicos do sistema prisional estadunidense, Leary viu-se diante de uma métrica que ele próprio havia ajudado a criar (um dos testes leva seu nome) e assim pôde conduzir suas respostas pra onde quis. E ele queria ser jardineiro numa prisão de menor segurança. Conseguiu, pra, assim, em setembro de 1970, fugir. Logo estava na Argélia e, em 1971, na Suíça, o berço do LSD.
Durante o exílio, ganhou uma boa grana escrevendo livros, foi convidado pra dar aulas em universidades, mas queria mesmo era saber de ficar com o máximo de mulheres quanto fosse possível e aprofundar a amizade com seu ídolo Brian Barritt, autor inglês que também era íntimo da contracultura e das experiências com sintéticos. Leary conheceu Barritt na Argélia e dizia que podia se comunicar por telepatia com ele.
É aqui que ele encontra Göttsching e Enke. É aqui que, em agosto de 1972, criam juntos o disco “Seven Up”, uma experiência radical aos ouvidos desavisados, incluindo os fãs do Ash Ra Tempel.
A dupla encontrou Leary em Berna (onde o disco foi gravado, no Sinus-Studio), enquanto levava seu Ash Ra Tempel pelos palcos da Europa. A Suíça, afinal, é logo ali ao lado, e assim que souberam que o fugitivo e famosíssimo Leary estava no país vizinho, Göttsching e Enke trataram de dar um jeito de gravar com o maluquete.
Barritt conta como foi esse encontro: “jamais havíamos ouvido falar de Ash Ra Tempel, mas ouvíamos um bocado de sons da Alemanha; e gostamos – eles não estavam tentando se tornar estrelas do rock, nem tinham cacoetes de estrelas, pareciam mais uma turba que gostava e estudava música, nos impressionou, além do que já estávamos de saco cheio de Pink Floyd”.
Barritt e Leary tinham a ideia de uma experiência sonora, uma interpretação musical de seu “mapa da mente”, um disco que revelasse os diferentes estados de sua experiência com a percepção. Surgiu, assim um certo conceito: “space” seria baseado nos quatro níveis mais baixos da mente, enquanto “time” seria instrumental e seria baseado nos três níveis maios altos, numa equação que Barritt resumiu como “Time + Space = timESPace”.
Mesmo com essa viagem toda, Barritt, Leary, Göttsching e Enke juntaram-se em Berna pra assinar um contrato de realização do disco. Göttsching admite que até aquele momento não sabia quem Leary era: “já havia ouvido falar dele nas primeiras tratativas sobre esse trabalho, mas achava que iria encontrar algo como um guru indiano, com aquela barba e aqueles cabelos, mas no final das contas era um cara bem legal e mente-aberta, ele sentava conosco, tomava umas, fumava um baseado… era bastante flexível”.
Enke voltou pra Alemanha pra formar uma banda. Juntou o time que deu, já que a banda meio que se reformulava a todo instante, sempre ao redor dos dois únicos membros fixos. Aqui, temos Manuel Göttsching (guitarra e experimentos eletrônicos) e Hartmut Enke (baixo, guitarra e experimentos eletrônicos), além de uma mistura de jovens músicos amadores e outros já rodados: Michael Duwe (vocal e flauta), Portia Nkomo (vocal), Steve Schroeder (órgão, ex-Tangerine Dream), Dietmar Burmeister (bateria), Tommy Engel (bateria adicional), Klaus D. Mueller (tamborim), Dieter Dierks (sintetizador) e os vocais de Brian Barritt, Liz Elliot e Bettina Hohls. Além, óbvio, de Timothy Leary nos vocais e no suprimento de alucinações.
Manuel Göttsching
É um disco inteiro gravado sob o efeito das drogas, sintéticas ou não. O nome do álbum foi tirado do refrigerante usado pra tomar com as pílulas – sem que a banda soubesse que estava tomando-as, num primeiro momento. E o trabalho todo levou três dias e três noites: o primeiro dia serviu pra dupla Barritt e Leary escrever as letras; o segundo pra gravar o lado A; e o terceiro, o lado B.
Aparentemente, Göttsching e Enke não viam mal algum nas ilações sobre a forma alucinógena de trabalhar no disco. Naquela época, quanto mais doido, melhor. Afinal de contas, eles estavam tendo o privilégio de usar o nome, a mente e a publicidade em torno de Leary. Leary, por sua vez, divertia-se e colocava em prática mais uma experiência digamos científica, mesmo já sendo um dos homens mais procurados dos Estados Unidos.
Tanto que o resultado final é bem menos Ash Ra Tempel. Dividido em duas partes, o lado A, exatamente chamado de “Space”, partia de canções quadradas, começando com um blues, “Downtown”, pra logo se meter a experimentos eletrônicos e sônicos, cheios de ruídos e incômodos ao ouvinte, com berros, diálogos, conversas e afins; e o lado B, “Time”, aproximava-se do kraut do Ash ra Tempel, embora estivesse mais pendente ao progressivo (vide o trecho “Neuron”). Nessa última parte, “She” encerra a contenda retrabalhando “Suche” e “Liebe”, o longo epílogo do segundo disco, “Schwingungen”, de 1972. Pouca gente se deu conta.
Na primeira parte, porém, as gravações se mostraram cheias de buracos. Na mesa de corte, em Colônia, Alemanha, Dieter Dierks, responsável pela mixagem, resolveu o problema chamando Portia Nkomo, uma cantora local, e preenchendo os espaços com sintetizadores e ruídos e experiências.
Parecia um álbum difícil, mas Leary adorou, sem perceber que o cordão umbilical da obra nem era tão distante ou estava centrada apenas no devaneio: a referência que os críticos identificaram é o “Alpha Centauri”, segundo disco do… Tangerine Dream, de 1971.
O disco, claro, passou longe de ser um sucesso, nem academicamente, nem em vendas. Leary foi preso novamente, ao tentar entrar no Afeganistão, no aeroporto de Kabull. Ficou preso até 1976, na Folsom, a mesma prisão famosa que abrigou Johnny Cash (e onde ele gravou o excepcional “At Folsom Prison”, em 1968). Estava condenado a noventa e cinco anos de cadeia, mas, ironia das ironias, o governador Jerry Brown, sucessor de Reagan, o libertou. Esse período na cadeia foi um dos seus mais prolíficos na literatura.
Leary morreu aos 75 anos, em 1996, na Califórnia.
Göttsching reformou o Ash Ra Tempel pra Ashra, teve uma sólida e inventiva carreira solo e lançou a série “The Private Tapes”, em seis volumes, resgatando apresentações da banda.
“Seven Up” não foi a única viagem.
Ouça na íntegra:
LADO A
1. Space (15:55)
1a. Downtown
1b. Power Drive
1c. Right Hand Lover
1d. Velvet Genes
LADO B
1. Time (21:37)
2a. Timeship
2b. Neuron
2c. She