REVISITANDO: TOSHIO HOSOKAWA – VOICELESS VOICE IN HIROSHIMA (1989-2001)

“tsuki izuki / kane wa shizumeru / umi no soko”

Os versos do haikai de Matsuo Bash? (1664-1694), que querem dizer “onde está a lua? / o sino do templo está lá / no fundo do oceano”, são ouvidos na faixa final de uma das obras mais marcantes sobre as bombas atômicas que foram jogadas em Hiroshima e Nagasaki, setenta anos atrás.

Essa obra é de autoria de Toshio Hosokawa, que nasceu em Hiroshima, em 1955, dez anos após as bombas, e não teve uma vida ruim. Foi estudar na Alemanha, na Universität der Künste Berlin (Universidade das Artes de Berlim). Ao voltar ao Japão, tornou-se compositor residente da Orquestra Sinfônica de Tóquio. Ganhou diversos prêmios pela Europa. É reconhecido no seu meio como um dos mais delicados e inventivos compositores clássicos da atualidade.

Mas durante todo esse tempo, seus pais nunca conversaram com ele sobre o atentado de guerra cometido pelos Estados Unidos, que acabou matando diretamente mais de setenta mil civis em Hiroshima e mais de quarenta mil em Nagasaki (veja fotos do massacre aqui).

Em 1989, com 44 anos, começou a produzir um réquiem pra dar voz a uma tragédia que as pessoas ao seu redor se recusavam a falar. Ele atribuía tal fuga à vergonha pela derrota. E por conta desse silêncio, chamou sua obra de “Voiceless Voice In Hiroshima”, as vozes sem voz da sua cidade natal.

São cinco partes. Cada uma delas pode ser executada individualmente. As duas primeiras, “Preludio: Night” e “Death And Ressurrection”, foram compostas em 1989, sendo que a última só foi encerrada doze anos depois, quando as outras três foram compostas. Os citados versos de Bash? estão da quinta, “Temple Bells Voice”, entoados por um coro misto que varia de apresentação pra apresentação.

A peça estreou em 4 de maio de 2001, em Munique, Alemanha, com a Orquestra Sinfônica e Coro da Rádio de Munique, e com a direção e regência de Sylvain Cambreling. A duração foi de uma hora e dez minutos, tal como se ouve no disco, que foi gravado nessa apresentação.

A imprensa à época disse que a obra de Hosokawa “combina a tradição clássica ocidental com a sensibilidade estética japonesa, com imaginação altamente inovadora”.

Numa entrevista a Carmen Miró, pra Sonograma Magazine, em 2001, Hosokawa refletiu sobre criar beleza a partir de algo tão vil como os atentados: “eu preciso ver a realidade através da música e isso é a única coisa que posso fazer como artista – criar beleza através do meu trabalho. Um grande amigo meu me falou sobre beleza. Ele me mostrou duas imagens: uma maravilhosa de Marilyn Monroe, e outra de um quadro de Alfred Durer, que mostrava sua mãe idosa e doente de raiva. Então, ele me perguntou qual delas representa a beleza? Alguém pode argumentar que a mãe de Durer é mesmo mais bonita que a foto de Marilyn, porque representa a vida real. O artista tem que trabalhar dentro da sua própria realidade e temos que encontrar a beleza que ele tenta transmitir. Então, o velho provérbio ‘a beleza está nos olhos de quem vê’ de certa forma se torna verdade”.

E completa: “beleza também pode ser enganosa e mutável, fala com o ouvinte de uma forma única e pessoal – é por isso que algumas pessoas acham a música de Mozart tão comovente, enquanto pra outros ela é apenas barulho”.

Foi na realidade terrível das bombas, que diretamente chocaram-se com sua família e seu povo, que Hosokawa foi buscar sua inspiração: “compus ‘Voiceless Voice In Hiroshima’ dez anos antes de compor minha segunda obra sobre os horrores da guerra, ‘Sternenlose Natch’ (2011), e há, claro, alguma similaridade entre os dois álbuns e também algumas diferenças. Hoje, vivemos num mundo infestado de horror, onde coisas terríveis acontecem, e eu simplesmente não quero fechar meus olhos pras essas monstruosidades, quero ver essa realidade. Ainda acho que a música pode conseguir algo diferente e mais agradável, porque exprime e revela a beleza; nós podemos fazer uma música contra este horror. Precisamos da natureza, mas também não podemos esquecer o horror e o caos”.

Uma das características mais marcantes de “Voiceless Voice In Hiroshima” é a leveza, marcada pela ação preponderante dos silêncios. Hosokawa diz que pro “músico tradicional japonês, o silêncio é muito importante” e faz uma alusão à escrita.

“Um bom exemplo está na caligrafia japonesa – o calígrafo japonês desenha uma linha mas ele não começa no papel, já que o começo mesmo se dá em algum ponto no ar. E o que você vê no papel branco é o desenho, mas é apenas uma parte do movimento, não a experiência toda. Aqueles movimentos no ar são essenciais pro desenho e sem eles não haveria nada pra se ver. Pra mim, a música é como isso”.

“O silêncio é tão importante quanto o som em si. O silêncio faz o som se intensificar e sem tal movimento, o som será fraco”, diz a entrevistadora, ao ver um pequeno exemplo feito com as mãos no ar por Hosokawa, que terminou num bater de palmas.

“O silêncio não é o nada, o silêncio é cheio de som se só pudéssemos ouvi-lo. Se eu puder colocar uma forte intensidade no silêncio, em seguida, o som se torna mais forte. Pra fazer um som forte, precisamos de um silêncio muito forte”, completa o artista.

“Voiceless Voice In Hiroshima” precisa ser assim, entremeado de silêncios, como é silencioso o fundo do mar onde as vozes de alerta – os sinos – foram parar após as explosões. Os sinos dos templos se silenciaram-se. A cidade silenciou-se. As pessoas, inclusive as que sobreviveram, silenciaram-se.

Mas a história não pode silenciar. O horror levado por dois artefatos cruelmente batizados com nomes infantis, “Little Boy”, a bomba que destruiu Hiroshima (em 6 de agosto de 1945), e “Fat Man”, a que caiu em Nagasaki (em 9 de agosto de 1945), não pode ser esquecido.

Hosokawa fez sua parte com “Voiceless Voice In Hiroshima”. Sua música deu voz à sua dor.

1. Preludio: Night (1989)
2. Death And Resurrection (1989)
3. Winter Voice (2000-2001)
4. Signs Of Spring (2001)
5. Temple Bells Voice (2001)

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