SALEM – “FIRES IN HEAVEN”, OU A ESPETACULARIZAÇÃO DO NADA

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“Fire In Heaven” é o segundo disco da banda Salem, dos Esteites, lançado no já longínquo 30 de outubro de 2020 – “longínquo” porque na pandemia mortal e arrasadora da covid-19 que o mundo vive há mais de um ano, se uma semana parece um tempo interminável, o que dizer de meses; ficar sozinho com seus pensamentos te transforma em nada além de uma saleta de ócio-não-criativo, a despeito de você, se não estiver desempregado, estar trabalhando muito mais do que o normal ou qualquer lei deveria permitir e aparentemente não ter tempo pra rigorosamente nada a não ser existir.

O disco é o segundo do ex-trio (a vocalista Heather Marlatt largou a encrenca), lançado depois de um sumiço não explicado de dez anos, que começou após os lançamentos do primeiro álbum, “King Night”, em 2010, e do EP “I’m Still In The Night”, de 2011.

Não o conteúdo em si, mas a história pregressa da banda chamou a atenção da articulista Carrie Battan, da revista The New Yorker, que publicou um texto em novembro, três dias depois do lançamento do disco. Parecia um texto chapa-branca, espaço comprado pelos promotores da obra (a etiqueta Decent Distribution), mas… O jeito que ela descreve a trajetória é salpicado de curiosas tiradas sarcásticas que por si só já dão uma ideia da eficácia da mensagem da Selem.

“Quando se trata de avaliar momentos culturais contenciosos”, diz o início de seu artigo, “apenas o tempo pode fornecer a perspectiva necessária pra aprimorar o julgamento de alguém”.

“Revisamos e esclarecemos nossa compreensão das tendências e fenômenos em retrospectiva: escândalos se tornam marcos, controvérsias tornam-se coisas deliciosas, fatos bobos tornam-se tesouros nacionais, obras ‘importantes’ parecem dispensáveis. Em retrospecto, a era disco foi na verdade complicada e musicalmente significativa; os monólogos de Kanye West nunca foram as orações brilhantes que pensávamos que fossem”, segue.

“Mas a retrospectiva ofereceu pouca clareza no caso de Salem, um trio de músicos petulantes que alcançou a notoriedade há uma década, despertou uma tempestade de areia de intriga e consternação, e imediatamente desapareceu de vista. Formada por jovens de vinte e poucos anos de Michigan e Illinois, a banda incluía dois produtores e vocalistas maltrapilhosamente tatuados, Jack Donoghue e John Holland, e a tecladista e vocalista Heather Marlatt. Sua música era uma névoa fortemente distorcida de samples, vocais arrastados e alusões ao uso de drogas e ao oculto”. Segundo Battan, “o som era atraente, mas muitas vezes obscurecido por suas travessuras”.

Isso porque “Donoghue e Holland gostavam de cultivar uma imagem pública tumultuosa: Donoghue notoriamente cancelou uma entrevista pro Times; e quando conseguiram se envolver com a imprensa, as conversas podiam ser ultrajantes e sinistras. Eles fizeram apresentações ao vivo tão sonolentas e sem brilho que até mesmo seus fãs mais apaixonados às vezes os expulsavam do palco com vaias”.

Esse tipo de culto é difícil de conseguir, porque se equilibra em uma fina linha entre o desprezo da mídia – e sem a mídia, dificilmente uma banda passa sua mensagem -, como garotos mimados, e a consagração como “gênios incompreendidos”. A história da música tem inúmeros casos assim – o Oasis, por exemplo, como caso de sucesso. Já o Happy Mondays teve seus momentos de fama e muito dinheiro, mas agora trafegam apenas entre o ostracismo e a saudade.

O primeiro EP, “Yes I Smoke Crack”, de 2008, teve uma tiragem de quinhentas cópias em vinil branco e se tornou “altamente cobiçado”. Não foi promovido porque a banda assim não o queria.

“Esse tipo de comportamento poderia simplesmente ter parecido um espetáculo detestável se a música não fosse uma evocação tão perfeita de um certo tipo de escrotidão (norte-)americana – algo que capturou a melancolia e o absurdo de uma vida vivida no fundo do poço. Esses músicos estavam em constante diálogo com o vazio e se divertindo com ele”, Battan segue, pra depois emendar que “o grupo trouxe uma nova energia pra um canto do mundo da música indie que havia se tornado frágil. Na época, um gênero de música de sintetizador lo-fi e sensual, chamado chillwave, estava ganhando destaque. Um subconjunto de bandas que incluía a Salem começou a fazer músicas que soavam como uma reação contra a mornidão percebida do chillwave e sua opressão e… bem, frieza”.

Era uma época que a escriba chamou de “apogeu da blogosfera musical”, que tinha fixação na invenção dos microgêneros. A bem da verdade, pouca coisa mudou, a não ser o fato de a tal blogosfera musical ter voltado a ser o que era antes, o que significa importância cultural bem próxima do zero.

E a chilliwave tinha como tendência colocar a vibe acima da substância. Até porque a substância é um retumbante nada.

Alguns críticos da Salem acreditavam que seus membros eram panacas sem sofisticação musical ou idiotas barulhentos, ou que se inspiravam levianamente no rap, sem constrangimento. Segundo Battan, você revisitar os antigos artigos sobre a banda, o que mais chama a atenção é o grande volume e entusiasmo do discurso. Um crítico a descreveu como “a pior banda nova” dos Estados Unidos, composta de pessoas “estúpidas demais pra funcionar tanto como humanos, e quanto mais como músicos”.

Convenhamos que este tipo de crítica hiperbólica é tão atraente pra quem escreve como pra quem recebe a crítica. Em ambos os casos, os leitores, concordando ou discordando (e as duas alternativas na era das redes sociais sempre estão mergulhadas em muita paixão e animosidade), vão compartilhar e divulgar o discurso.

Outro crítico caracterizou o álbum de estreia como “doente”, não apenas no sentido de que possa ser excepcionalmente bom, mas no fato de que parece extremamente desagradável. Uma dicotomia deliciosamente audível pros ouvidos da juventude, por não determinar rigorosamente nada e abrir espaço pra defesas acaloradas.

“Mas”, lembra Battan, “como jovens provocadores vendendo travessuras decadentes e altamente estilizadas, o trio ganhou a atenção de um segmento rarefeito da classe criativa. Michael Stipe (do REM) e Terence Koh compareceram a um show, e Givenchy usou a música do Salem pra um desfile em 2011. Kanye West recrutou Donoghue pra trabalhar em seu álbum ‘Yeezus’ (que ganhou todas as babas e ovações da crítica especializada em 2013)”.

Mesmo assim, a banda permaneceu obscura pra maioria das pessoas, mas, segundo a articulista da New Yorker, “previu uma série de correntes musicais, incluindo os sons assustadores e espasmódicos de experimentalistas pop e a virada do hip-hop pro (ouvinte) chapado e emotivo”.

Então, em 2011, a Salem parou abruptamente de fazer música, por razões que ainda são obscuras. Bem, não que as pessoas realmente quisessem saber o que tinha acontecido, mas seus integrantes não são do tipo que se explicam. “Pra surpresa de ninguém, a Salem não está interessada em nada tão enfadonho como uma narrativa de redenção”, Battan ressalta.

“A banda deixa isso claro em ‘Fires In Heaven’, seu primeiro álbum em dez anos. ‘Pergunte-me o que estou fazendo da minha vida / Não tenho porra nenhuma pra contar’, uma voz anuncia ameaçadoramente em ‘Capulets’, a revigorante faixa de abertura; ‘eu não tenho que me desculpar por porra nenhuma, é outro dia'”. É curiosa essa fixação por “porra nenhuma”, um “nada” bastante enfático que é normalmente compreendido (ou confundido) como uma forma de extravasar os fracassos.

“É difícil dizer, exatamente, quem está falando”, diverte-se Battan em sua análise, “porque Donoghue e Holland modulam fortemente suas vozes e às vezes forçam um sotaque sulista, fazendo-os soar mais como rappers de Houston do que como garotos indie brancos do meio-oeste. Esse truque, que se tornou bastante comum recentemente, permite que eles evitem a vulnerabilidade e se transformem em identidades alternativas, acesso ao qual provavelmente não ganharam – outra forma de provocação que eles não estão dispostos a ceder depois de dez anos”.

“Musicamente, ‘Capulets’ é um Salem clássico. O grupo extrai tanto da música litúrgica católica e do canto gregoriano quanto de qualquer coisa contemporânea (sua música mais exitosa, ‘King Night’, de 2010, é uma interpolação estridente de ‘O Holy Night’). Em ‘Capulets’, Donoghue e Holland derramam-se sobre uma gravação lo-fi de ‘Dance Of The Knights’ de Sergei Prokofiev. Salem tende a usar suas peças como instrumentos altos e contundentes pra despertar as sensações”, defende a articulista. “As faixas de ‘Fires In Heaven’ são menos como canções do que explosões de melodrama”.

Não ha novidade em “Fires In Heaven”. Nenhuma. A massa crítica gringa deixou-o escanteado em suas listas de final de ano. O álbum, pra Battan, porém, “apesar de ocasionalmente parecer desleixado e leve, é potente – cheio de energia de pesadelo, bravata e misticismo”.

Há de se identificar nessas características algo que o filme “Nomadland” (2020), de Chloé Zhao, espancou na tela: vidas acerca do nada, vidas que vivem apenas pra sobreviver, o que pode parecer muito pra grande parte do planeta (e o que não falta no planeta é gente marginalizada pelo “progresso”), mas é extremamente cruel e depressivo.

Ou ainda, uma correlação com a série ultrafamosa e reverenciada, “Seinfeld”, que dizia-se uma “comédia sobre o nada”. A diferença é que “Nomadland” e “Seinfeld” definitivamente não falam sobre “nada”. Ou, por outra, usam o tal “nada” como construção pra crítica ao fracasso do liberalismo estadunidense, ao capitalismo concentrador de renda, e à sociedade fútil, um usando um drama, outro usando o humor muitas vezes escrachado.

A Salem é uma banda que concentra sua promoção em meios formais, como redes sociais, comunicados à imprensa, videoclipes bem editados, e, assim, sua música se mostra “um álbum de recortes de despachos das periferias de uma nação sitiada”.

Se há uma mensagem? Claro que há. Possivelmente nenhuma obra deixa de ter uma mensagem qualquer. Até porque o consumidor é que vai determinar isso. Mas essa espetaculização do nada, que atrai muita gente e não sem motivo, tem seus inconvenientes, que é justamente o vácuo de (busca de) compreensões, quaisquer que sejam.

O disco novo “não ofereceu nenhuma pista sobre como os membros da Salem passaram na última década”, ressalta Battan. Importa? Na verdade, é proposital. “Sua música permanece oblíqua: um pouco assustadora, frustrantemente opaca, mas mesmo assim absorvente”.

Dez anos fazem diferença e os garotos de vinte anos já são homens de trinta. Nessa altura do campeonato, traz não só os primeiros cabelos brancos, mas certas responsabilidades como acúmulo de boletos. No caso, “Fires In Heaven” foi afetado também, como um disco mais “tranquilo”, “mais celestial do que infernal”. Não dá pra ficar fazendo travessuras pra sempre, como um modo de vida. O “nada” pelo sucesso ou pelo fracasso, sempre vira alguma coisa.

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