Essa é a história mais legal surgida nos últimos meses. Ou a teoria da conspiração mais bem bolada pra ajudar a vender um podcast em 2020. E se “Wind Of Change”, uma das canções mais populares dos Scorpions, tiver sido escrita não pela banda alemã mas pela Agência Central de Inteligência dos Estados Unidos, a famosa CIA?
O megasucesso do décimo-primeiro disco da banda, “Crazy World”, de 1990, voltou à tona e ganhou vários artigos mundo afora, inclusive no Brasil, sobre a questão, que, no fundo, é curiosa e engraçada.
Um podcast em oito episódios (mais bônus) investigou se o hit foi escrito pela CIA como uma peça de propaganda da Guerra Fria. Ele está nos principais serviços de streaming, em inglês, como o Deezer (clique aqui) e o Spotify (clique aqui), com uma capa que parece cartaz de filme hollywoodiano de ação. Espera-se que vire filme, tão bizarra é a ideia.
A série foi produzida pela Crooked Media e Pineapple Street Studios e é chamada, claro, de “Wind Of Change”. Estreou em 11 de maio e você já deve ter lido por aí. A pessoa por trás da loucura é o jornalista investigativo da revista The New Yorker Patrick Radden Keefe.
Patrick contribui pra revista desde 2006. Ele já escreveu artigos famosos, como sobre a captura do barão da droga mexicano Joaquín (El Chapo) Guzmán Loera e o papel da Família Sackler e sua empresa Purdue Pharma no desencadeamento da crise dos opióides.
Sua história “A Loaded Gun”, sobre a conturbada da atiradora em massa Amy Bishop, recebeu o National Magazine Award em 2014.
Ele é autor também de um livro que merece a leitura: “Say Nothing: A True Story Of Murder And Memory In Northern Ireland”, de 2019, sem edição brasileira (dá pra ler um trecho aqui).
Sua pesquisa no caso do Scorpions foi incentivada a partir de uma fonte na CIA que havia lhe contado sem querer a história.
Quem ouvir o podcast tomará conhecimento de uma trama onde espiões fazem o impensável, uma história secreta de propaganda escondida na música pop e um labirinto de segredos do governo estadunidense, enquanto tenta desvendar um dos grandes mistérios da Guerra Fria.
“É uma história que se estende por gêneros musicais, além de fronteiras e períodos da história”, disse Keefe em entrevista a um blogue. “Então, era importante pra mim ouvir a música, os sotaques e as vozes, e julgar por quem poderia estar mentindo e quem estaria dizendo a verdade. Eu me diverti muito perseguindo essa história louca ao longo de um ano, explorando os desvios sombrios da história da Guerra Fria e fazendo quase cem entrevistas em quatro países com roqueiros e espiões”.
Ou seja, é um trabalho bizarro, mas é pra se levar a sério.
Ou, como diz o Deadline, na exclusiva de abril com Keefe, a série pode ser descrita como uma mistura The Spinal Tap, a banda fictícia do filme de 1984, com “Todos Os Homens Do Presidente”, o filmaço de 1976 sobre o Watergate.
Até o presente momento, o cantor do Scorpions, Klaus Meine, é oficialmente creditado como autor da letra e melodia de “Wind Of Change”, mas, segundo Keefe, ele não passa de um laranja pras intenções secretas da CIA.
Antes, um pouco de história pra quem tem menos de trinta e nasceu num mundo sem divisão entre comunismo e capitalismo – ok, esqueça a família maluca Bolsonaro que vê comunismo em tudo.
Em 9 de novembro de 1989, o Muro de Berlim, que dividia as duas Alemanhas, a Ocidental, capitalista, e a Oriental, “comunista”, caiu, no ato simbólico que derrubou a cortina de ferro, em tese encerrou a Guerra Fria e realinhou o mundo. Um ano depois, a Alemanha estava reunificada.
Quando o disco do Scorpions saiu, em 1990, o presidente russo Mikhail Gorbachev colocava em prática o processo de abertura ao mundo de seu país, a chamada “Glasnost”, num longo caminho que desmembraria a antiga União das Repúblicas Socialistas Soviéticas e faria surgir trocentos outros países, inclusive no leste europeu, com ruptura de outras nações.
Os primeiros versos de “Wind Of Change”, inclusive, começam na capital russa: “I follow the Moskva / Down to Gorky Park /
Listening to the wind of change”.
Os “ventos da mudança” estavam mais pra os “ventos da vitória” ocidental.
Em 2015, o Scorpions disse que a música foi escrita depois que notaram a diferença na atmosfera na Rússia, depois de visitar o país pela primeira, em 1988, e depois pro Moscow Music Peace Festival, em 1989.
A banda disse tempos depois que queria “mostrar às pessoas na Rússia que havia uma nova geração de alemães crescendo”. Uma geração que “não vem com tanques e armas e faz guerra – vem com guitarras e rock’n’roll e trazendo amor!”.
“Houve tantos momentos emocionais em Moscou”, disse Meine. “Acho que poderia ter sido o Bon Jovi ou o Motley Crue, qualquer um desses caras que voltaram pra casa inspirados pelo que viram, mas fomos nós, Vimos tantas mudanças de Leningrado em 88 a Moscou em 89. Essa foi a inspiração pra ‘Wind Of Change'”.
Keefe diria que faz parte do jogo de cena a defesa da autoria pela banda.
O co-fundador da Crooked Media, Tommy Vietor, disse à Deadline que a história é “louca o suficiente pra ser verdade”. “Sabemos que a CIA patrocinou secretamente eventos culturais durante os anos 50 e 60. Eles pagaram pra filmar George Orwell, ‘1984’ e ‘A Revolução Dos Bichos’. Eles patrocinaram uma turnê européia da Boston Symphony Orchestra. Por que não ajudar uma banda de rock alemã a escrever uma balada poderosa pra rasgar a cortina de ferro?”, questiona.
“É uma história interessante, definitivamente”, admite Meine a Keefe depois de saber da teoria e da quantidade de entrevistas e pesquisas que o jornalista havia feito pra descobrir a verdade por trás de uma possível conexão entre Scorpions e o governo dos EUA.
“É uma boa ideia pra um filme. Isso seria legal”, resigna-se. “Se a CIA tivesse uma música como essa pra enviar um cantor e… infiltrá-la na cortina de ferro, isso faria sentido. É um pouco estranho pensar nisso. Mas, por outro lado, destaca o poder da música, em grande medida. De repente, metade da Rússia assobia ‘Wind Of Change’, e eles não sabem o porquê”.
No fim, Meine curtiu a “piada” mas não levou a sério, como era de se esperar.
Ao jornal inglês The Guardian, Keefe admitiu que essa suposta operação em particular parece bobagem, colocando em perspectivas as ações que a CIA elaborou e atuou nos bastidores, patrocinando golpes de estado e implantando ditaduras militares (incluindo no Brasil, em 1964).
“Em 2020, olhamos pra trás e pensamos: ‘é claro que o Muro de Berlim cairia, é claro que a União Soviética entraria em colapso’, mas a CIA na época não considerava isso garantido. Havia uma sensação de que a União Soviética iria durar pra sempre, e a CIA precisava fazer tudo o que pudesse pra minar isso”, disse o jornalista.
De fato, olhar a história com trinta anos de obra pronta é fácil, tanto que a Queda do Muro de Berlim é um dos momentos mais importantes da humanidade, mas na época nada parecia garantido. Até porque quem vê a história enxerga fatos estanques. Quem vive a história vê tais fatos lentamente acontecendo e se construindo, correndo o risco de muitas vezes não se dar conta da mudança até que ela esteja concretizada e irreversível.
Por isso, segundo Keefe, a CIA precisava usar todas as armas dentro de seu arsenal, incluindo um das exportações culturais americanas mais importantes da época, o rock pesado.
“As autoridades soviéticas estavam há muito nervosas com a liberdade de expressão que o rock representava e como isso poderia afetar a juventude soviética”, diz Keefe. “A CIA viu o rock como uma arma cultural na Guerra Fria. ‘Wind Of Change’ foi lançada um ano após a queda do Muro de Berlim e tornou-se este hino pro fim do comunismo e pra reunificação da Alemanha. Tinha essa mensagem de poder brando que o serviço de inteligência queria promover”.
Se uma loja de discos no Azerbaijão tinha o poder de preocupar a elite soviética da época (leia sobre isso aqui), o que não dizer de um grupo popular como o Scorpions?
“Você não podia comprar música ocidental em lojas de discos, apenas através do mercado negro, e poderia ter muitos problemas ao ouvir uma banda como o Scorpions”, explica Keefe. “Entrevistei pessoas em Moscou e São Petersburgo que corriam o risco de serem presas. Essa música significou muito pra eles”.
A música, aliás, está em várias passagens revolucionárias pré-Glasnost, como este caso (leia aqui) do punk rock na Estônia. Simplesmente porque os jovens soviéticos tinham sede de consumir música.
Mas a conexão deles com o “Wind Of Change” seria a mesma se fosse cinicamente inventada pelo outro lado? “Essa é uma das perguntas que investigamos: o que significa pro ouvinte saber que uma música pode não ter sido uma pura expressão dos sentimentos do artista, mas uma propaganda política?” questiona Keefe.
“Mas não acho que a CIA tenha confessado os sentimentos de ‘Wind Of Change’; havia um sentimento de exaustão dentro do bloco soviético, o que ajudou a provocar a mudança. A música refletiu isso e também intensificou essa emoção, que é o que a CIA gostaria”, pondera.
Em sua busca pela verdade, Keefe descobriu uma história secreta de artistas, cineastas e músicos que colaboram com os serviços de espionagem dos Estados Unidos, com personagens tão improváveis quanto Louis Armstrong, Nina Simone e roqueiros da era hippie, o Nitty Gritty Dirt Band “cruzando com os mundos da política e da espionagem de maneiras totalmente alucinantes pra mim”.
Segundo o The Guardian, investigando esse “mundo desorientador da propaganda”, projetado pra parecer algo além de propaganda, Keefe começou a experimentar o que ele chama de efeito “o salão dos espelhos” (hall of mirrors).
“Eu descobria toda hora uma nova informação que me fazia reavaliar coisas que achava que sabia. Eu estava me perguntando: sou paranóico? Estou vendo sombras onde não há nada? Tomara, no podcast, que o ouvinte tenha experiências semelhantes, escutando os entrevistados revelarem essas coisas estranhas e perguntando: ‘eles estão mentindo? Posso confiar neles?'”.
A sensação de que nada é o que parece coincide com os nossos tempos. “Durante todo o tempo em que trabalhamos na série, as notícias estavam cheias de relatórios sobre operações de influência russas durante as eleições nos EUA em 2016”, diz. “Esses temas de propaganda, teorias da conspiração e qual é a verdade encontram alguns ecos interessantes”.
“Ainda que os Estados Unidos tentem projetar o poder que têm através da sua capacidade militar, está provado que a cultura e os valores do país são muito mais poderosos”, diz Keefe, no segundo episódio da série.
Em tempos de notícias falsas que elegem presidentes ignorantes como Donald Trump e Jair Bolsonaro, e mudam a história de um país, como no caso do Brexit, é de se imaginar o que a CIA não pode estar fazendo no campo cultural hoje, agora, nesse momento em que você aperta o “play” do seu aplicativo preferido de música.
Agora, toda hora que você ouvir aquele assobio no início de “Wind Of Change” você poderá se pegar questionando se não é massa de manobra da CIA pra derrubar governos. Mais do que isso, será que você não é usado a todo instante?