SIOUXSIE & THE BANSHEES, CHRISTINE E AS MÚLTIPLAS PERSONALIDADES

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Christine Costner Sizemore nasceu em 4 de abril de 1927. Trinta anos depois, sua história estava sendo levada às telas do cinema e a atriz escolhida pra representá-la, um ano depois, ganharia o único Oscar de Melhor Atriz da carreira. Joanne Woodward era, naquele momento, mais uma atriz de TV e a namorada de Paul Newman, com quem viria a se casar em 1958 e viver até a morte do ator, em 2008 (cinquenta anos!). Mas o papel mudou seu patamar no cinema.

Não era pra menos. A estranha história de Sizemore era ainda mais espetacular naqueles anos 1950, com a psiquiatria evoluindo e descobrindo novos e infindáveis caminhos do labirinto da mente humana.

A Sizemore do filme “As Três Faces De Eva” (The Three Faces Of Eve) era uma dona de casa despretensiosa que sofre do que agora é chamado de transtorno dissociativo de identidade, a doença psicológica que se manifesta na exibição de múltiplas personalidades, um prato cheio pra uma atriz impecável como Woodward.

O roteiro foi adaptado do livro de mesmo nome, escrito pelos psiquiatras Corbett H. Thigpen e Hervey M. Cleckley. Embora no filme a personagem Eva White assumisse “apenas” mais duas personalidades, Eva Black e Jane, a verdadeira Sizemore apresentou mais de vinte personalidades, que apareciam em grupos de três.

É tão impressionante que o diretor Nunnally Johnson começou o filme de uma maneira inusitada: o jornalista britânico Alistair Cooke é o narrador e aparece na frente da câmera, na primeira cena, falando diretamente aos espectadores, que a incrível história que eles estão prestes a ver é verdadeira, ou, nos termos usados, “um fac-símile de eventos reais”. Não bastavam apenas algumas letras na tela dizendo que aquilo era baseado em fatos reais.

Ok, apesar da dose de sensacionalismo que deve ter impressionado os espectadores de uma época de poucas informações, não deixava de ser verdade, em grande parte.

No final do livro e do filme, a protagonista se cura, com uma das personalidades, a mais centrada, se instalando pra sempre. Mas na vida real não foi bem assim, tão simples. O final feliz foi prematuro o suficiente pra fazer valer os parcos dólares do ingresso do cinema.

Mas Christine Costner Sizemore passou por momentos muito mais sombrios. Seu primeiro casamento, como conta o filme, foi pro beleléu por motivos óbvios, principalmente porque o bronco do marido era também abusivo. Ela se casou de novo e até isso não foi um fim; ela suportou uma identidade fragmentada até meados da década de 1970, vendo vários psiquiatras depois de Thigpen e Cleckley, autores do livro, até que, aos cuidados de um médico da Virgínia, Esteites, Tony Tsitos, suas personalidades foram unificadas.

Ao New York Post, em 1975, ela disse: “você não sabe como é maravilhoso ir para a cama à noite e saber que será você quem acordará no dia seguinte”. Não era exagero.

A forma como seu eu se dividia era notável. Algumas de suas personalidades sabiam dirigir, por exemplo, mas outras não. Ela abriu uma loja de tecidos, segundo seu filho, “porque uma das personalidades era uma costureira talentosa”.

Suas personalidades se vestiam de maneira diferente, falavam de maneira diferente, com sotaques diferentes, comiam de maneira diferente e isso chegava a fazer Sizemore engordar ou emagrecer, dependendo de quem estivesse no comando. “Certa vez, pesava oitenta quilos porque estava alimentando três pessoas diferentes com refeições diferentes no mesmo corpo”, disse ela ao mesmo Post.

O doutor Tsitos começou a tratá-la em 1970 e, em 1974, ela não estava mais se dissociando.

Segundo o New York Times (de onde foi tirada a genial foto que ilustra este artigo, de autoria de David Longstreath, da Associated Press), os psiquiatras acreditam que a dissociação é um mecanismo de defesa: uma reação a traumas graves na infância ou abuso físico, emocional ou sexual prolongado. No caso de Sizemore, a fragmentação em sua mente começou quando ela tinha apenas dois anos, depois de ter testemunhado uma série de incidentes horríveis, incluindo sua mãe sendo ferida gravemente em um acidente de cozinha, o funeral de uma criança, o arrastamento de um cadáver em uma vala e um homem sendo “cortado ao meio por uma serra em uma serraria”, disse ela ao Post.

Conforme ela crescia, ela era punida por atos de desobediência ou crueldade que ela não se lembrava de ter cometido. Ela ficaria perplexa com um teste na escola pro qual uma personalidade diferente havia se preparado. Assim, com vários episódios do tipo, nunca terminou o ensino médio.

Sizemore escreveu dois livros após curada: em 1977, saiu “Eu Sou Eva” (“I’m Eve”), escrita com a prima Elen Sain Pittillo. Em 1989, escreveu uma continuação de suas memórias, “A Mind Of My Own”, em que ela contou a integração de suas personalidades e sua vida depois da cura. Anos depois, ela foi uma oradora frequente em nome de pessoas com doenças mentais e uma pintora figurativa talentosa, de acordo com o NYT.

Seu segundo marido, Don Sizemore, morreu em 1992. Além de seu filho, um orientador de escola secundária, Christine Sizemore deixou duas irmãs, Louise Edwards, conhecida como Tiny, e Becky Walton; sua filha, Taffy Fecteau, do primeiro casamento; dois netos e três bisnetos. Christine morreu em 24 de julho de 2016, aos 89 anos.

Já o doutor Tsitos, que se tornou famoso com o caso, acabou sendo preso em fevereiro de 2021, por pedofilia, compartilhando pornografia infantil.

Colin A. Ross, um psiquiatra especializado em dissociação, publicou um livro em 2012, chamado “The Rape Of Eve”, no qual acusava o Dr. Thigpen de ter exercido uma influência antiética sobre Sizemore e a manipulou pra propósitos nefastos durante e após o término de seu tratamento com ela. Dr. Thigpen morreu em 1999.

“Em diferentes ocasiões, ele atuou como psicoterapeuta, publicitário, agente literário, agente cinematográfico, editor de livros, negociador de contratos e consultor jurídico dela”, escreveu Ross. “Ele compareceu ao funeral do marido dela sem ser convidado, era padrinho do filho dela e se envolveu em má conduta sexual com ela. Ele providenciou pra que ela fizesse um aborto e, durante o procedimento, ela foi esterilizada sem o consentimento dela ou do marido”.

A vida de Sizemore foi turbulenta o suficiente com suas mais de vinte personalidades, mas ela também se envolveu com muita gente aproveitadora e de caráter duvidoso.

Pra além do seu caso especialíssimo, porém, há a inspiração que a história produz nas mentes criativas. “As Três Faces De Eva” foi um filme de sucesso mediano, o que é compreensível. Mas a história não parou ali, como vimos.

Em 1977, um artigo da Observer contava sua história, com Sizemore já sem a dissociação. Como viva hoje aquela mulher?

A revista foi parar nas mãos de Steven John Bailey, então com 22 anos, que um ano antes, com o nome de Steve Havoc – e depois Steve Severin -, empunhando seu baixo, havia criado a Siouxsie & The Banshees.

Naquele momento, o baterista Kenny Morris sugeriu que uma foto ligeiramente alterada (com os olhos e a boca escurecidos) de Christine como uma criança de dez anos, seria a capa ideal pro single de “The Staircase (Mystery)”, lançado em 23 de março de 1979. A ideia foi rejeitada, pois não havia nenhuma conexão aparente entre a música e Christine Sizemore, pra fundamentar o uso da fotografia. Uma foto do vídeo promocional da música foi usada pra capa.

Tempos depois, o guitarrista John McKay e Kenny explicaram à imprensa que um dos motivos que fizeram eles saírem da banda foi o desacordo em relação à capa de “The Staircase (Mystery)”.

Peter “Budgie” Clarke e John McGeoch os substituíram.

Embora a ideia de Kenny tenha sido rejeitada, Steven ficou suficientemente fascinado com a história pra fazer mais investigações sobre os antecedentes de Christine Sizemore.

A partir daí, Severin conseguiu uma cópia de “Eu Sou Eva”. No livro, ela explica em muitos detalhes os incidentes mentalmente perturbadores que ocorreram em sua infância e que continuaram por toda sua vida. Severin ficou impressionado com aquela mulher que sofreu em uma idade tão tenra as coisas mais duras. Sua dissociação era seu mecanismo de defesa.

Mas Severin ficou mais impressionado com o mecanismo da doença. É algo que vem dos porões do cérebro, inalcançável voluntariamente. Era como se a pessoa abrisse os portões do inferno e seus medos pudessem livremente circular. Um mundo sem fronteiras, sem travas sociais. Você é o que você acha que tem que ser pra se defender do que a realidade estapeia na sua cara.

Inspirado, Steve Severin escreveu a letra que falava das vinte e duas personalidades que afloravam em Christine.

O single foi gravado em fevereiro de 1980 nos estúdios Surrey Sound e produzido por Nigel Gray e pela própria banda.

“Christine” entrou no álbum “Kaleidoscope”, de 1980, o terceiro e mais bem-sucedido da banda. O single chegou ao posto de número… vinte e dois nas paradas britânicas, uma coincidência inusitada.

A letra não é nada sutil: “Ela tenta não quebrar, estilo caleidoscópio / A personalidade muda por trás de seu sorriso vermelho / Cada novo problema traz um estranho pra dentro / Forçando inevitavelmente mais um novo disfarce”.

O refrão cita uma personalidade de Christine, que estão no livro, “the strawberry girl” e chama a personagem de “banana split lady”, outra das suas personalidades, o que é bem fofo, dado a situação. Mas a parte mais forte é quando diz “Agora ela está em carmesim / Agora ela é a tartaruga / Desintegrando”.

A Christine da Siouxsie & The Banshees é apropriada pro estilo sombrio, naquela fase da carreira, da banda. Enigmática, como a própria Siouxsie Sioux.

No lado B, mais Sizemore. E de maneira mais explícita. A faixa se chama “Eve White / Eve Black” e é ainda mais soturna.

A imprensa recebeu a música de forma meio morna: “mal reconhecíveis como os Banshees, eles deixaram pra trás seus arranjos anteriormente áridos e árduos, como esperando a morte, e produziram um caso muito mais leve e fluente desta vez, embora seu gosto pelo bizarro e melodramático permaneça”, ressaltando que a personagem da canção era estranha o suficiente pra banda. “Ouvindo com atenção, no entanto, o estilo é familiar em parte, o baixo profundo e estrondoso de Severin, a insistente bateria de apoio de Budgie – mas Siouxsie está completamente transformada. Sua voz ainda é o suficiente pra gelar os ossos, mas contendo mais sentimento e convicção, como se ela estivesse realmente se relacionando com a música desta vez”.

O single surgiu vinte e três anos depois do filme, tendo Christine já curada, sem dissociações e com o primeiro livro lançado, e o filme enfrentando o peso da história, com a chegada da era dos blockbusters.

Veja, em 1980, Joanne Woodward já era uma atriz consagrada e tinha 50 anos. Susan Janet Ballion, a Siouxsie Sioux, nasceu exatamente em 1957, ano de lançamento do filme (ela nasceu em maio, o filme chegou aos cinemas em setembro). São apenas mais duas coincidências a ligar os tantos personagens da história.

Mesmo assim, a música não acrescentou nada à história de Sizemore. Mas significou muito pra banda. Não se tem notícia se Sizemore comentou algo sobre a música.

Severin e Siouxsie, anos depois justificaram-se do porquê compor sobre o tema: “ela (Sizemore) se tornou um caso clássico por causa dos traumas pelos quais passou quando criança. Ela testemunhou muitos atos violentos. Parte dessa opressão sentida aparece nas nossas apresentações”. É como se a história e a banda fossem feitos um pro outro.

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