THE OTHERWISE – O ROTEIRO DE MARK E. SMITH QUE NÃO VIROU FILME

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“Muito estranho e verdadeiramente assustador”: esse era o tom do roteiro do filme de terror que Mark E. Smith, líder iconoclasta de The Fall, começou a escrever em 2007. Quatorze anos depois, “The Otherwise” finalmente está sendo publicado.

Quem conta a história é o próprio Graham Duff, que viveu a proeza com o vocalista do The Fall, morto em 24 de janeiro de 2018.

Era uma sexta-feira, 16 de fevereiro de 2007, Duff conta. “Estou esperando na recepção do prédio da BBC, em Oxford Road Manchester. Estou esperando para conhecer Mark E. Smith. Eu estou nervoso. Eu gostaria de não estar. Mas estou”. E não era pra menos.

Duff já conhecia Smith não só da fama do vocalista em ser um porra-louca anti-social, mas por propriamente ter encontrado Smioth após alguns shows.

“Na verdade, encontrei Mark várias vezes nos últimos trinta anos. Embora, pra ser justo, foram predominantemente momentos fugazes após shows, onde nossas trocas foram em grande parte do tipo ‘Isso foi incrível’ e ‘valeu, mano'”, ele contou em um artigo do The New European, publicado em 21 de maio de 2021.

Duff não é um zé-mané qualquer. Ele é escritor, ator, produtor de televisão. Sua primeira peça foi um monólogo chamado “Burroughs”, em 1992, baseado na vida de ninguém menos que William S. Burroughs. No ano seguinte, fez outro monólogo com “Diário De Um Louco”, de Nikolai Gogol (que no Brasil ganhou famosa montagem de Rubens Corrêa, nos anos 1960, e de Elias Andreato, nos 1980) – o personagem principal é um funcionário público “patético” em uma sociedade injusta que, pra conseguir atenção da amada filha do chefe, que nem dá bola pra ele, passa a perseguir seu animal de estimação, criando um mundo de realidade paralela. Qualquer semelhança com o mundo musical de Smith não parece muita coincidência.

Mas Duff fez carreira na televisão e no rádio também, escrevendo peças, série, esquetes e afins.

“Então, alguns meses atrás, escrevi uma carta pra Mark, perguntando se ele estaria interessado em fazer uma aparição especial como Jesus, em meu sitcom da BBC ‘Ideal’. Pra minha alegria, descobri que Mark e sua esposa Elena já eram fãs do show”: o programa ficou no ar de 2005 a 2011, com mais de cinquenta episódios.

“Durante a filmagem”, contou Duff, “ele estava claramente fora de sua zona de conforto. Mas o resultado final na tela – Mark banhado em um brilho dourado, dando instruções divinas desbocadas, com trilha sonora dos estranhos sons celestiais da banda Coil – é definitivamente minha maior conquista na TV”.

O resultado está aqui:

“Depois, sentamos e conversamos no camarim de Mark. Ele mencionou como, há alguns anos, desenvolveu algumas ideias horríveis pra uma TV do País de Gales, mas que eles acabaram perdendo tudo. Eu disse que se ele estivesse interessado em ressuscitar as ideias, eu gostaria de ajudá-lo a apresentá-las aos executivos de TV”, contou Duff.

“Uma semana depois”, ele seguiu, “estou lavando a louça na cozinha, quando minha esposa Sarah vem da sala de estar. Em uma voz comicamente casual, ela diz: ‘Mark Smith está no telefone pra você’. Ela sabia o quão inesperado e emocionante era aquele momento pra mim. Eu seco minhas mãos, entro na sala, pego o telefone e tento parecer o mais casual possível. ‘Gostaria de saber se você gostaria de se encontrar e conversar sobre escrever algumas coisas sobrenaturais juntos pra TV?’, ele pergunta. Sim. Sim, é exatamente isso que quero fazer”.

Por incrível que pareça, Smith chega ao encontro na hora certa e sóbrio: “ele parece elegante e relaxado, vestido como sempre com calças pretas, botas de couro polido, uma camisa branca e uma jaqueta de couro de corte terno. Seja no palco ou na rua, sua imagem é imutável. Dizemos olá, apertamos as mãos e meus nervos se esgotam”.

A dupla é levada pra uma sala de reuniões, com persianas do chão ao teto cobrindo a parede de vidro. É um momento tão solene quanto padrão no mundo corporativo. Duff chegou a escrever “algumas notas com antecedência”, mas avisa a Mark que “não queria começar a trabalhar em nada a sério, até que tivéssemos uma conversa adequada sobre o tipo de projeto que poderia ser. Tudo o que decidimos até este ponto é que gostaríamos de escrever uma série de antologia de terror ou sobrenatural. E deveria ser, como salientou Mark, ‘muito esquisito e propriamente assustador’.

Duff tinha mente histórias de objetos voadores não identificados, especialmente em Todmorden (a pouco mais de trinta quilômetros de Manchester), ou Pendle Hill, um morro a cinquenta e cinco quilômetros da Manchester:” entre 6 e 18 anos, morei na cidade de Great Harwood. Quando eu saía, atrás de casa, eu via a enorme protuberância de Pendle pairando sobre a cidade. Com sua história de bruxaria antiga e sua grama úmida e verde, cheia de cogumelos mágicos, sempre pareceu ser um local de potencial sobrenatural”.

“Existem várias referências a magia e bruxaria nas letras de Mark”, lembra Duff; “em 1986, o Fall lançou a música ‘Lucifer Over Lancashire’ – embora Mark estivesse trabalhando em versões da letra da música desde pelo menos 1977. O texto final está repleto de referências sobrenaturais. Adoraria colocar um pouco dessa atmosfera em um roteiro”.

Mas Mark jogou água fria na empolgação velada de Duff: “desculpe-me, Graham, eu não me preparei”. Mas, ele então limpou a garganta e emendou: “tive uma ideia pra algo chamado ‘The Death Of Standards'”.

Duff agiu como qualquer fã que quer trabalhar com o ídolo agiria: ficou emocionado ao saber que Smith já tinha um título – “e que título!”.

Ele passou a contar o esqueleto de uma história sobre uma mulher que trabalha no governo local. No caminho pro trabalho, ela comete um atropelamento e foge. Ao chegar ao escritório, ela reclama com sua equipe sobre como os motoristas que se envolvem em atropelamentos devem ser executados. Então, os membros de sua equipe começam a se comportar da mesma maneira estranha: realizando atos terríveis e depois atacando esses mesmos atos. Duff adorou a história bizarra.

“Estamos trabalhando há cerca de 45 minutos quando Mark acende um cigarro”, lembrou Duff. “O prédio da BBC é – como quase todos os outros prédios do país – um prédio pra não fumantes. Mark sabe disso. Eu sei isso. ‘Você não tem permissão pra fumar aqui, digo obedientemente. Mark balança a cabeça e franze os lábios: ‘eles vão nos avisar se for preciso’. Conversamos por mais alguns minutos, então a porta se abre e uma jovem de cabelos escuros enfia a cabeça pra dentro da sala. ‘Errr, você não tem permissão pra fumar aqui’. Ela diz com uma voz ligeiramente apologética. Mark ergue os olhos e lhe dá um sorriso encantador: ‘oh, desculpe-me, amor – não sabia’. Ele apaga o cigarro na sola do sapato. Ela sorri de volta e fecha a porta. Mark se vira pra mim: ‘vamos esperar mais uma hora, depois vamos tomar uma bebida'”.

Mark foi educado, cumpriu as regras “quando informado”, apagando o cigarro, mas… já havia dado seus tragos. Essa era uma amostra em tempo real de Mark E. Smith.

Uma hora depois, os dois estavam num bar: “bebemos garrafas de cerveja e continuamos a pensar em ideias pra histórias. Menciono o cenário da canção de 1979, ‘A Figure Walks’, em que um personagem passa por uma longa caminhada pra casa durante a qual eles têm seu capuz fechado, restringindo sua visão em dois terços, enquanto são seguidos por um monstro estranho e alienígena: ‘podemos usar essa ideia?’. ‘Talvez’, ele respondeu, com uma expressão duvidosa. Eu balancei minha cabeça: ‘foi maus, esqueça isso. Eu sei que você não está realmente interessado em voltar às velhas ideias'”.

Mark sorriu: “não, na verdade, não. Qual é o ponto? Eu já fiz isso, porra. É como se esses idiotas ligassem pra nós, pedindo ao grupo pra vir e tocar o ‘Hex Enduction Hour’ (quarto disco da banda, de 1982, mas a música está em ‘Dragnet’, o segundo, de 1979). Eles querem evolução! Veja, quanto mais ao norte (da Inglaterra) você vai, menos interessadas no passado as pessoas ficam, entende?”. Duff concorda. Como não?

Com o cair da noite, entre ideias e ideias, Mark E. Smith surge, como se imagina: animado, envolvente e bêbado, enquanto Duff está apenas bêbado, porque deve ser difícil acompanhar Smith em uns tragos.

Pra Mark, o álcool era um de seus combustíveis constantes. “Mas, verdade seja dita, cerveja e uísque não são seus únicos vícios”, ressaltou. “Na verdade, no início da tarde, ele havia se referido a ter recentemente tomado um pouco de ácido durante uma viagem. Imagino que relativamente poucos homens de 50 anos ainda tomem ácido”.

“Abrimos as pesadas portas de vidro do bar. Saímos pra rua de paralelepípedos. O repentino ar fresco da noite quase arde. Mark ainda tem um copo de uísque na mão. Ele toma mais alguns goles, em seguida, joga o vidro pesado em uma lata de lixo. Ele chama um táxi. Eu digo a ele que vou escrever algumas notas sobre as histórias. Dizemos boa noite. Nós nos abraçamos.

“Calma, cara”, disse Mark com um sorriso, enquanto sobe na parte de trás da cabine.

“Tive um dia tão divertido, inspirador e criativo. Estou fervendo de positividade. Quando o táxi vai embora, quase aceno. Eu ouço meu cérebro dizendo: ‘você está desenvolvendo uma série de antologia sobrenatural com Mark E. Smith’. Parece altamente improvável. Como algo que pode acontecer em um sonho: ou em uma série de antologia sobrenatural”.

O encontro narrado por Duff é como parece que deveria ter sido o roteiro. “The Otherwise: The Script For A Horror Film That Never Was”, que leva a assinatura dos dois, acabou sendo publicado pela Strange Attractor.

A sinopse ficou assim: “o Fall está gravando um EP em um estúdio de gravação isolado em Pendle Hill. A paisagem circundante de Lancashire está à mercê de uma gangue de motoqueiros satânicos e assombrada por clãs escoceses que escaparam da rebelião jacobita de 1745 e viajaram no tempo”.

Todas as produtoras de filmes disseram que era “muito estranho” pra ser feito. Sim, a ideia era exatamente essa. “Também é espirituoso, chocante e genuinamente assustador”, salienta a apresentação oficial do livro.]

Parece uma descrição do próprio The Fall.

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