THE SORRY SHOP – SOFTSPOKEN

Se você conhece alguém que goste de shoegaze, faça o exercício singelo da cabra-cega: coloque esse disco pra rolar e peça pra esse alguém tentar adivinhar qual é a banda e, mais importante, de onde ela é.

“Softspoken” é o terceiro disco da gaúcha The Sorry Shop, lançado em 3 de agosto de 2017, numa parceria dos selos Lovely Noise Records e Crooked Tree Records, quatro anos depois do bom “Mnemonic Syncretism”, de 2013 (leia e ouça aqui).

O que acontece muito frequentemente nessas obras de shoegaze/dream pop é que elas tendem a cair facilmente no esquecimento, dada a minúscula variação entre elas. Quem faz shoegaze modo My Bloody Valentine na Escócia, faz shoegaze modo My Bloody Valentine no Azerbaidjão, nas Filipinas, na França, na Rússia ou no Rio Grande do Sul. Parece tudo uma coisa só, uma preguiça infindável que rumina sobre a mesma prática. Quase ninguém mais dá atenção.

Pois bem, a Sorry Shop não escapa muito disso. Então, a brincadeira da cabra-cega facilmente fará o amante do shoegaze se enganar sobre a autoria da obra e sua procedência. A diferença é que “Softspoken” tem algum ingrediente secreto, uma fórmula como a da Coca-Cola que faz com que ela seja diferente da Pepsi, mesmo sendo o mesmo refrigerante.

Se o ouvinte insistir na audição – como fiz aqui – repetidas vezes, não vai achar a resposta. Talvez nem Régis Garcia, o perfeccionista criador da obra, junto com Marcos Alaniz (vocal e teclas), Mônica Reguffe (baixo e vocal), Kelvin Tomaz (guitarra e vocal) e Eduardo Custódio (bateria). A banda precisamente devia acreditar estar fazendo algo genérico – e, repito, bom e agradável – como nos dois discos anteriores.

Mas, daí, basta atravessar as três primeiras, “Daydream Dancing”, “Instant Karma Suicide” e a excepcional “Pearls” pra compreender que alguma coisa melhorou e distingue “Softspoken” das demais milhares de obras que os shoegazers do mundo inteiro desovam ano após ano.

Garcia, em conversa com o Floga-se, admite que demorou um bocado pra soltar o disco, porque percebeu no processo uma “Síndrome de Kevin Shields”, o líder do My Bloody Valentine: “sem a presunção de ser massa como ele, mas com a patologia. Um bocado foi por não achar que qualquer coisa que saísse ia ficar legal. Tava com a expectativa muita alta, buscando uns padrões impossíveis pro que posso fazer em casa. Aí joguei tudo fora. Passei um tempão, um ano pelo menos, quase desencanando da TSS. Depois bateu uma dor na consciência e fui recuperando umas coisas antigas e regravando aos poucos pra começar a reorganizar as ideias. Aí percebi que o que consigo fazer não vai muito além disso, por enquanto. E aí fui aceitando e trabalhando aos poucos no disco. O tempo pra fazer isso é complicado. Tem o trabalho como psicólogo clínico, que demanda tempo, um doutorado pra terminar esse ano e mais o trabalho com o (selo) Lovely Noise Records. A The Sorry Shop vai se esgueirando no meio dos compromissos”.

Obviamente, o leitor pode intuir que não conheço todos os músicos shoegazers do mundo, mas baseando-se nas lendas em torno de Shields, o perfeccionismo parece ser mesmo uma linha que une esses criadores. Bem como um certo complexo de inferioridade, advindo, talvez, do esgotamento que o gênero apresentou após “Loveless”, o disco que, pra muitos, encerrou as possibilidades do estilo. O próprio My Bloody Valentine foi vítima disso no seu retorno vinte e tantos anos depois, com “MBV” (leia aqui).

“Pra não deixar de ser completamente honesto, tenho visto muita coisa legal de muita gente que conheço e bateu um complexo de inferioridade também. A produção do pessoal tá em níveis bem legais e me sinto super inseguro pra lançar disco”, disse Garcia, pouco antes de colocar a obra na praça.

Apesar desse complexo e do perfeccionismo, a partir do momento em que a banda se dispôs a lançar o trabalho, ainda assim rolou um atropelo: “eu funciono mais ou menos assim, na correria. Senão, acabo não botando o carro na rua. E esse disco era pra ter saído em 2014. Eu já joguei um disco fora e comecei desde o comecinho de novo. Reaproveitei umas coisas que eu tinha dispensado antes. Uma baderna”, admite.

Cada um com seus processos e eis aqui uma vantagem de não ter contrato e vínculos com gravadoras: o tempo não vira inimigo.

O que nos permite concluir que esta é uma obra deslocada da sua época. Num momento de imensas facilidades de gravação e divulgação, onde você vê qualquer garoto com uma guitarra plugada ao computador fazendo o que chama de “disco”, o perfeccionismo é uma commoditie rara. Há discos gravados numa noite, como algo que se escreve num diário, de supetão.

Embora a explosão criativa ainda seja um critério a se aplaudir e admirar, é bom saber que tem alguém nos subterrâneos preocupado com mínimos detalhes, em fazer e refazer até se chegar a um bom bocado de satisfação própria.

“Softspoken” tem mais maturidade do que se encontra por aí. Em inglês, a poesia do Sorry Shop é econômica, mas não foge de preocupações como a depressão e a apatia. Não é disco temático, entretanto. A faixa de abertura, “Daydream Dancing”, por exemplo, tem letra bem leve, enquanto “Instant Karma Suicide” prega o “suicídio social” pelo isolamento num relacionamento (“in a world full of mistakes / You never judged me / We are jumping together”).

O isolamento e falta de comunicação também chegam na reta final do disco, quando ele se torna mais barulhento e com mais camadas. “Treasures / She keeps / Deep / In her heart” vem de “Keepsake”, na sequência fulminante com “Soothing Wave” e “Nowhere Safe”, que fecha o álbum.

A banda traduz o disco pela capa (criada por Meire Todão), com “o leve paquiderme desfocado”, dizendo que “mesmo com todo peso do mundo é possível flutuar. Com letras sempre introspectivas e com algo de melancólico na estética do som, (esse é) um disco de paisagens amenas e despretensiosas, convidando o ouvinte ao imaginativo labirinto de distorções”.

De fato, faz sentido. Mas há mais em “Softspoken”. Mesmo com todo o peso de se apresentar ao mundo, por mais que a gente evite conflitos, críticas e debates, sempre estaremos com algum holofote em nossa direção. Será inevitável. Cada um trata seu enfrentamento de uma maneira. Há quem parta pra briga, há que vá na base do sorriso, outros na fala mansa, outros na imponência. A The Sorry Shop vai pro embate com camadas de guitarras, climas e vocais submersos. Não é o primeiro que faz isso, não será o último, mas aqui a banda arrebatou nossa atenção.

Ouça o disco:

A produção é de Régis Garcia e da banda, que também é o autor de todas as canções. As gravações se deram no Estúdio 2nd Floor, na cidade de Rio Grande, interior do Rio Grande do Sul.

01. Daydream Dancing
02. Instant Karma Suicide
03. Pearls
04. Rosetta
05. Lost In Between
06. Softspoken
07. Queen Of The North (clique aqui pra ver o vídeo)
08. Green
09. Keepsake
10. Soothing Wave
11. Nowhere Safe

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