Em 1990, o mercado brasileiro recebia “Time Will Burn”, o explosivo e acachapante disco de estreia da Pin Ups, uma banda fora-da-ordem do já então comercialmente aceito e bem-sucedido “br-rock”, que tinha como líderes os Titãs, a Legião Urbana, Paralamas do Sucesso e Kid Abelha (além de Ultraje A Rigor, Blitz, Capital Inicial e tantos outros).
“Luiz Gustavo, Zé Antonio e Marquinhos (…) botaram essa bomba infernal no mundo e jogaram querosene no tempero”, escancarou a coluna “Noise Waves”, aqui do Floga-se (leia aqui).
A importância desse disco é tamanha que nunca mais o rock nacional seria o mesmo, no sentido de criar uma cena badernaeira o suficiente pra bagunçar a lógica inclusive dos subterrâneos da produção musical local. Era um dane-se em forma de guitarras, um que-se-foda às brasilidades, à língua pátria e a tudo o era “comercialmente aceitável” à época (digamos que até hoje em dia o é).
Um trabalho de tamanha envergadura não podia ficar destinado ao esquecimento ou apenas na memória afetiva de quem viveu aqueles tempos. Precisava ser registrado. Muita gente o fez em texto, estudos, homenagens sonoras e até livro. Mas nunca a reverência máxima pelo cinema havia sido feita.
Os diretores Marko Panayotis e Otavio Sousa resolveram essa questão com o documentário “Time Will Burn – O Filme”, uma viagem pelos anos que se seguiram e que tomaram o underground brasileiro no início da década de 1990 com bandas como Killing Chainsaw, Mickey Junkies e Second Come.
Otavio Sousa é diretor dos documentários “Supercarioca – 25 anos”, sobre o discaço lançado pela Picassos Falsos em 1988, e “Agridoce – 20 Passos”, da Pitty, ambos pra DVD e TV a cabo. Marko Panayotis trabalhava no departamento de jornalismo da MTV e é ex-diretor dos programas Jornal da MTV e Yo! MTV. Esse é primeiro projeto de ambos diretamente pra cinema.
Panayotis conversou com o Floga-se sobre a produção do documentário, que já está em processo de pós-produção, no tratamento de áudio e cores, e ainda em 2016 será lançado em festivais e nos cinemas nacionais.
Assim como o que as bandas documentadas representam, o “documentário foi feito no esquema ‘do it yourself’. A direção, captação, roteiro e edição são de nós dois (minhas e do Otavio). Contamos com alguns amigos na produção, parte gráfica e na pós-produção de áudio, mas a produção é totalmente independente, só nossa”.
Segundo Panayotis, “a ideia surgiu basicamente por eu ter ouvido muito as bandas dessa época, ter muitos discos e coletâneas, e de reparar como foi um momento importante, um capítulo fundamental na música brasileira e que nunca foi retratado num documentário. Pesquisando um pouco mais, notei que não havia muitos registros, não tinham shows no Youtube, não tinham DVDs (ou VHS) dessas bandas. Apenas alguns LPs e CDs. Foi a última geração analógica e, por isso, os registros estavam se perdendo. Assistindo a alguns documentários gringos como o ‘Hype’ e o ‘The Year Punk Broke’, eu tive esse estalo: ‘o Brasil também teve uma cena intensa e marcante no começo dos anos 90 e ninguém está falando disso… O tempo vai passar e as pessoas vão se esquecer… Essa cena precisa ser registrada num documentário!'”.
Mas o faça-você-mesmo nunca é fácil, de modo que desde o surgimento do estalo da ideia até o momento atual lá se foram cinco anos. Até porque a dupla se propôs desde o início a trabalhar sem patrocínios, verbas estatais, leis de incentivo ou financiamento coletivo. Tinha que ser com o equivalente de dificuldade que as banda tinham naqueles anos. Se tivesse injeção de dinheiro na parada, seria muito mais rápido.
Mas até que deram sorte no começo: “comecei a pesquisar, escrevi um projeto e levei pro Zé Antônio, guitarrista do Pin Ups, já que a ideia era usar o mesmo nome do primeiro disco deles, o ‘Time Will Burn’. Algumas semanas depois, ele me liga e avisa que ia ter um ensaio do Pin Ups pra tocar na Virada Cultural de 2012 e que se eu não gravasse naquela semana, dificilmente eu conseguiria a banda reunida de novo”.
Como é a “última geração analógica”, conseguir material visual não foi um trabalho fácil. A dupla foi atrás das bandas e de fãs e jornalistas pra ver quem tinha material gravado e fotos. “A maior parte, ninguém sabia onde estava. De resto, muita VHS, fita cassete, betas analógicas, que tivemos que converter uma a uma em estúdios aqui de São Paulo. O trabalho em busca de fotos também foi de formiguinha. Achar as pessoas, procurar no Facebook, mandar mensagem, rezar por uma resposta e pela autorização pra usarmos. A pesquisa dos materiais foi muito difícil”.
“As pessoas foram muito solícitas. Os músicos, em geral, ficaram muito honrados em serem procurados pra um documentário e as pessoas que tinham fotos da época ficaram muito felizes em ajudar. De verdade. Mandavam as fotos e diziam que estavam contentes em ajudar nesse projeto. Conseguimos fotos cedidas por nomes como Rui Mendes e vídeos cedidos pelo Raul Machado. Foi uma honra”, diz.
O documentário trata do período que vai de 1989, com o surgimento do Pin Ups, até 1994, quando rolou o segundo Juntatribo, o grande festival alternativo da época, que aconteceu no campus da Unicamp, interior de São Paulo, e que nessa derradeira edição ficou “fora de controle”, como lembra o jornalista Alexandre Matias, em seu “Trabalho Sujo”. Segundo disse à Folha de S. Paulo Sérgio Vanalli, o organizador do festival, o evento de 1994 foi o último porque “foram três dias de pura tortura; não quero correr o risco de causar um mal maior”.
Pra se ter uma ideia do tamanho da brincadeira, no segundo Juntatribo, que rolou em setembro de 1994, tocaram, entre outras, Pinheads, Intense Manner Of Living, Beach Lizard, Garage Fuzz, Resist Control, Concretenes, Wry, Drivellers, Killing Chainsaw, Pelvs, bricando de deus, Loop B, Relespública, Little Quail, Boi Mamão, Virna Lisi, Lingua Chula, Câmbio Negro e, claro, Planet Hemp, que acabou sendo o único nome a fazer sucesso em escala nacional, junto com o Raimundos, que tocou na primeira edição, a de agosto de 1993, com Second Come, Pin Ups, Muzzarelas, Low Dream, Mickey Junkies e Okotô.
Uma escalação dos sonhos pra qualquer um que goste de guitarras.
“O roteiro passa pelo surgimento dessas bandas (principalmente Pin Ups, Killing Chainsaw, Second Come e Mickey Junkies), a coincidência de cantarem em inglês e de terem influências musicais parecidas, o surgimento dessa cena, os locais pra tocar, o crescimento do público, o impacto do grunge, a celebração do Juntatribo, quando todas essas bandas do Brasil todo finalmente tocaram juntas, o interesse das gravadoras por essa cena e o impacto que essa cena sofreu pela chegada das novas bandas cantando em português… Além de tratar do legado deixado por elas e de retratar outros nomes que tinham sonoridade diferente mas que também transitavam entre elas, como o Defalla e o Okotô”.
O fato de as únicas que conseguiram projeção nacional serem justamente duas das que cantam em português – Raimundos e Planet Hemp – um tanto que encerraria a discussão que a mídia da época tinha sobre o idioma. A maioria dessas bandas cantava em inglês, puxadas pelo Pin Ups e seu “Time Will Burn”.
“Isso é abordado e discutido no documentário. Uma questão muito importante na época, principalmente pra imprensa, que insistia no ‘por que vocês cantam em inglês?’. Esse assunto é discutido no documentário e tem opiniões bem divergentes”, conta.
Dentre os entrevistados do documentário estão Fábio Massari e Gastão Moreira (MTV), Edu-K (De Falla), Cherry (Okotô), Japinha (CPM 22), Rafael Crespo (Planet Hemp), Rodrigo Lariu (Midsummer Madness), Roberto Cotrim (Espaço Retrô), além, claro, dos integrantes do Pin Ups, Killing Chainsaw, Mickey Junkies e Second Come. A garimpagem funcionou bem, já que o filme também oferece imagens raras e históricas de shows no Espaço Retrô (SP), no Aeroanta (SP), Circo Voador (RJ) e no festival Juntatribo. Há também fotos e cartazes da época.
Pin Ups
Os documentaristas escolheram não fazer nenhum juízo de valor sobre os motivos pro fim daquela cena ou os porquês do sucesso nacional (comercialmente falando) não ter chegado, mesmo com a cobertura da imprensa e da MTV brasileira recém-aportada por cá. Mas as bandas são questionadas sobre isso: “porque é claro que sempre existe a vontade de fazer sucesso, ou pelo menos de atingir um grande público. Os entrevistados em geral dão os seus porquês… Mas não fazemos nenhum julgamento quanto ao que foi certo ou o que foi errado. Eles simplesmente relatam o que acham que deu certo o que acham que deu errado e quais foram os motivos”.
Na opinião pessoa de Marko Panayotis, porém, “essa cena pode ser considerada bem sucedida na questão de ter deixado um legado do ‘do it yourself’, de que é possível viver sem uma grande gravadora, fazendo shows e tendo o seu público. Elas foram íntegras e fieis ao som que faziam e isso, pra mim, é um grande sucesso, pois hoje elas são vistas com admiração por muita gente. Quanto ao sucesso comercial, de tocar em rádios, atingir as grandes massas, elas não atingiram por vários fatores: primeiro porque o som era pesado, distorcido e cantado em inglês, numa época em que a axé music começava a dominar a mídia. Depois, porque elas não estavam muito afim de fazer concessões, como mudar o som pro português ou dar uma maneirada nas microfonias. A crise econômica e a falta de dinheiro das pessoas pra consumir (estamos falando da era Collor) também deve ser levada em conta. E, com certeza, a chegada do Raimundos, mesmo não sendo de propósito, influenciou muito, pois o público do rock voltou seus olhos totalmente pra eles, assim como as rádios e as gravadoras. E com isso, o foco no ‘rock em português’ acabou marginalizando essa cena”.
“Time Will Burn”, pra seus realizadores, pode abrir os olhos de uma nova geração pra essas bandas. “Só de comentar com pessoas mais novas e contar um pouco dessa história, eu já vejo amigos de 20 anos de idade sabendo quem é o Killing Chainsaw, por exemplo. Coisa que dificilmente eles saberiam hoje em dia. E pode despertar um interesse de pessoas de outros países nessas bandas. E isso não tem preço. Tomara que isso aconteça!”, torce Panayotis.
O documentário de 76 minutos deve estrear ainda em 2016 nos cinemas e festivais do Brasil, mas Panayotis revela que há muito material que ficou de fora, de modo que eles possuem o suficiente pra um seriado, se alguma emissora se interessar. “Esse exercício de edição foi muito difícil, com certeza. Não dava pra se apegar. Tudo que era pra ser dito e discutido no documentário foi feito e eu acredito que conseguimos mostrar tudo que as bandas tinham pra dizer sem tornar o documentário chato ou maçante. Acho que ficou na medida e espero que as pessoas gostem”.
Esse é o trailer oficial do filme:
Foi uma cena muito boa. Varias bandas legais, saudades das casas noturnas Urbania, Retrô, Rock House … ainda tenho guardado alguns flyers dos shows