Em 13 de dezembro de 1997, Tom Morello, guitarrista do Rage Against The Machine (além de Audioslave e Prophets Of Rage), foi preso por “desobediência civil”, durante os protestos contra a famosa marca de roupas Guess. Os brasileiros conhecem bem esse problema: a Guess era acusada de usar trabalho análogo à escravidão em suas confecções parceiras.
Quem vê hoje Morello carregando mensagens em suas guitarras perguntando sobre Marielle Franco, a vereadora-ativista pelo PSOL do Rio de Janeiro assassinada em 14 de março de 2018 e cujo crime de caráter político ainda não foi solucionado, pode achar que ele faz média com o público local. De jeito nenhum.
Vinte anos atrás, a MTV já noticiava que sua ira contra o sistema era legítima e não ficava restrita ao nome de sua banda. Morello é um ativista e não apenas um idealista. Talvez o último dos ativistas com uma guitarra nas mãos, num momento crucial pra humanidade, em que as democracias pelo mundo estão encolhendo (vale conhecer este estudo aqui).
Há muito ainda o que se entender e estudar sobre essa turbulenta época em que radicais perniciosos (de Trump a Bolsonaro) usam o ódio e o medo pra inflar o pior do capitalismo canibal nas pessoas e assim chegar ao poder pelo voto pra justamente diminuir o poder de fala e expressão das pessoas. É a democracia como ferramente pra matar a própria democracia. E um dos tópicos a ser estudado é como os ídolos dos jovens (que outrora estavam no rock) largaram mão do seu poder de influência pra ajudar a formar fãs mais contestadores e, ao invés disso, sobem no muro pra não ferir sentimentos e macular os negócios.
Morello não estava nem aí. Ainda não está. Ele se importa. Naquele dezembro de 1997, ele foi uma das trinta e três pessoas presas no protesto contra Guess. Na passeata que reuniu trezentas pessoas e parou em frente a um centro comercial em Santa Mônica, Califórnia, as pessoas exigiam da Guess uma explicação pro uso de trabalhadores em condições análogas à escravidão em sua produção. A marca não quis comentar, mas a polícia apareceu.
“Estamos tentando convencer as pessoas a não comprar mais a marca”, disse, em entrevista um pouco antes do protesto. “Somos contra porque eles usam trabalho escravo em Calcutá ou qualquer outro canto, e nos Estados Unidos – em Los Angeles, Nova Iorque e Los Angeles. Eles se beneficiam de trabalho escravo! E eles estão contando que as pessoas não vão se importar. Eles acham que a moda é mais importante e tudo o mais, e que por isso a exploração brutal desses trabalhadores não vai importar pra seus clientes. Estamos apostando que estão errados”.
Um representante do sindicato dos trabalhadores têxteis, que organizou o protesto, disse que a participação de Morello foi fundamental pra chamar a atenção pra causa, porque os fãs do Rage Against The Machine e os clientes da Guess têm algo em comum: são jovens da faixa dos dezesseis aos vinte e cinco anos.
Conhecer seu público e saber falar diretamente com ele é algo que quase nenhum artista da nova geração consegue, em termos sociais e políticos. O caso de Anitta durante os protestos do #EleNão, nas eleições presidenciais do Brasil em 2018, é exemplar.
Ninguém é obrigado a se posicionar politicamente, mas é curioso como hoje em dia, especialmente no Brasil, quem o faz tem forte ideal conservador e opressor (Roger Moreira e Lobão não estão sozinhos…). A maioria dos artistas com pensamento mais progressista e inclusivo reside em cima do muro ou fala de temas politicamente corretos, sem propriamente se meter com ativismo. A Internet é um porto seguro.
Além do trabalho escravo, Morello e o Rage Against The Machine já se envolveram em organizações como a Liga Anti-Nazista, os Trabalhadores Agrícolas Unidos, a Comissão Nacional para a Democracia no México e muitos outros grupos ativistas nacionais e internacionais. A banda protestou contra a censura de pé no palco, totalmente nua, e fazendo campanha com outros músicos pra fechar a prisão da Baía de Guantánamo.
Ele é graduado em Havard, em Estudos Sociais, e já se negou a fazer carreira em grandes corporações, apesar de ter capacidade e oportunidade pra isso. Em entrevista pra Guitar World, ele lembrou que “simplesmente não conseguia um emprego. Eu não estava disposto a entrar em carreiras onde um diploma de Harvard normalmente leva você, onde você tem que dedicar sua vida a uma empresa. Eu queria dedicar minha vida à música. Fiz telemarketing e trabalho temporário. Durante meses, trabalhei como arquivista. Basicamente, fui tratado como um cachorro. Neste momento, o maior empregador nos Estados Unidos é uma agência de empregos, e eu pude experimentar a situação por dentro. A insegurança é um bom negócio. Quando você tem que ligar todas as manhãs às sete pra descobrir se você tem um emprego ou não, não há maneira de você organizar um sindicato ou tentar obter um salário maior. Aqueles de nós sem conhecimentos de informática ganhavam quatro dólares por hora. Isso é escravidão salarial, e eu fiquei feliz em poder fugir disso”.
“A América se proclama como a Terra dos Livres, mas a liberdade número um que você e eu temos é a liberdade de entrar em um papel subserviente no local de trabalho. Depois de exercitar essa liberdade, você perdeu todo o controle sobre o que você faz, o que é produzido e como é produzido. E, no final, o produto não pertence a você. A única maneira de evitar chefes e empregos é se você não se importa em ganhar a vida. O que leva à segunda liberdade: a liberdade de passar fome”, reforça.
Morello sabe que o grande sucesso do sistema de propaganda capitalista é convencer o ser humano médio de que trabalhar em um sistema como esse é sinônimo de liberdade. É fazê-lo acreditar que tudo depende do seu próprio esforço e que todos partem da mesma linha de largada. “Então esse sistema de crença é manipulado pelos políticos pra incitar as pessoas brancas pobres contra pessoas negras pobres. Se eles soubessem como basta uma pequena porcentagem de seu dinheiro dos impostos pode aliviar a pobreza, enquanto quase todo o resto é apenas subsídio pras multinacionais… É uma distorção enorme. Moro em Los Angeles, onde algumas pessoas vivem em propriedades palacianas e algumas pessoas vivem em caixas de papelão. Isso é moralmente errado, e abordar esse problema seria um trabalho em qualquer sociedade futura. Em relação ao negócio da música, é quase risível que as pessoas ainda estejam perguntando como podemos conciliar nossas crenças com o fato de estarmos em uma gravadora grande. Teríamos prazer em assinar com a gravadora socialista que distribuiria nossa propaganda pros quatro cantos do globo, mas essas não são as circunstâncias históricas nas quais nascemos”.
Quando esteve recentemente no Brasil, em setembro de 2018 (quando sua guitarra gritou por Marielle), ele disse aos jornalistas: “como no meu país, o Brasil vive um momento de crise democrática. O assassinato sem solução da Marielle é um exemplo que mostra isso. Eu quis mostrar meu apoio e solidariedade aos brasileiros que lutam pelos pobres, pelos trabalhadores, pelo meio ambiente e contra o fascismo. É por isso que eu toco e é esta mensagem que estou levando ao palco hoje”.
Não foi a primeira vez. Em 2017, com o Prophets Of Range, sua guitarra trazia um “Fora Temer”, denunciando o golpe parlamentar que apeou do governo a presidente eleita Dilma Rousseff.
A mesma mensagem foi mostrada pela Nação Zumbi, na guitarra de Lúcio Maia, durante o show de encerramento da Paraolimpíada de 2016 (veja aqui). Maia é um dos poucos artistas que desceram do muro e não caíram do lado obscuro. Infelizmente ele não tem a mesma envergadura mundial de Morello – e essa definitivamente não é uma afirmação de comparação artística, é apenas uma questão de alcance.
Uma das coisas que precisamos no Brasil é de mais Maias e Morellos.