TREZENTOS BEATS POR MINUTO: DA TANZÂNIA PRO MUNDO

Não está muito longe daqui, em termos sociais, culturais e de perspectivas de futuro. Enquanto as periferias das grandes cidades brasileiras se expressam nos fluxos, com artistas autodidatas e totalmente independentes, a partir de batidões e “funks proibidões” (ou nas famosas aparelhagens de Belém do Pará), Dar Es Salaam, a maior e mais populosa cidade da Tanzânia, dá ao mundo o singeli, uma acelerada expressão musical local que tem experimentado voos longos mundo afora.

Com quatro milhões e meio de habitantes, Dar Es Salaam (“a casa da paz”, na tradução) já foi capital do país, que hoje é Dodoma, já foi chamada de “A Nova Iorque da África oriental” e é uma das cidades que mais crescem no mundo, com todos os problemas que um crescimento desenfreado acarreta.

Embora a Tanzânia tenha atrativos turísticos inquestionáveis – e basta ver meia dúzia de fotos de Zanzibar, na ilha de Unguja, pra se convencer disso, com o convidativo mar transparente – é na efervescência dos bairros das classes trabalhadoras de Dar Es Salaam que se encontra a pulsante criatividade latente do país.

“A multidão reuniu-se no gueto Mburahati da cidade mais populosa da Tanzânia pra celebrar o ‘Sounds Of Sisso’, o novo lançamento do amado selo ugandês Nyege Nyege Tapes”, conta Sirin Kale, no site Boiler Room. “Apresentando o som singeli pra uma audiência internacional pela primeira vez, a festa de lançamento da compilação no final de 2017 atraiu centenas de produtores de toda a cidade pra uma celebração prolongada”.

O selo Nyege Nyege Tapes está na vanguarda da vibrante cena subterrânea de música eletrônica da Tanzânia. Essa cena, que foi apelidada de “new wave da África oriental”, é a mais empolgante manifestação musical popular com alto potencial de exportação. O dono do selo é Arlen Dilsizian, com base em Kampala, Uganda, às margens do Lago Victoria e a quase mil e setecentos quilômetros de Dar Es Salaam. “A missão da gravadora é internacional”, escreve Kale. “A cada novo lançamento, Dilsizian e seus colaboradores estão promovendo sons eletrônicos da África Oriental pra uma audiência mundial baseada em uma dieta de house e techno mofados, pálidos e (quase sempre) masculinos”.

Enquanto a cidade experimenta uma mudança significativa no seu visual, com construções modernas, obras de engenharia de tirar o fôlego (como a nova ponte Selander), mais e mais gente chega das áreas rurais pra tentar a sorte na ex-capital. O resultado é uma cidade ainda mais cara – um dos aluguéis mais caros do continente – e multifacetada.

“Os não iniciados em singeli“, segue Kale, “vão descobrir que ele incorpora diferentes gêneros musicais de toda a Tanzânia, todos entrecruzados em um único som eletrônico. As batidas são repetitivas e velozes com vocais rápidos em staccato, e batidas repetitivas. Principais produtores da cena musical de singeli? Duke, Sisso, Bamba Pana, DJ Longo, DJ Balotelli e Jay Mitta. Estes são alguns dos nomes que você ouvirá na boca de todos”.

“Uingizaji Hewa” é o disco mais recente (de 8 de março de 2019) de Duke. Foi gravado no Pamoja Records, quando Duke já se mostrava respeitado na cena local. Com ele, no disco, estão MCZO, Dogo Lizzi, Pirato MC e Kashiwash, nomes que vão se multiplicando na mesma medida em que o som vai conseguindo atenção mundo afora.

No Sisso Studios, em Dar Es Salaam, são gravados muitas das obras lançadas pelo selo ugandês. Jay Mitta, o produtor-chave do estúdio, colocou seu disco-solo na praça em 11 de janeiro de 2019, “Tatizo Pesa”.

“Seu LP de estréia apresenta sua visão única sobre a música singeli e também apresenta uma nova força crescente na cena: a sensação de 14 anos, Dogo Janja”, diz o informe oficial. A FACT Magazine falou sobre o disco: “é o segundo de um série de quatro discos singeli moldados no Sisso Studios, o local de nascimento do som singeli, que nos foi apresentado na compilação ‘Sounds Of Sisso’, e no Pamoja Studios”.

Jay Mitta junto com Sisso e Bamba Pana formam a tríade pensante do Sisso Studios, o ponto de encontro pra MCs e produtores de singeli, em Mburahati, um dos bairros de Dar Es Salaam. Bamba Pana (nascido Jumanne Ramadhani Zegge) também lançou um disco, “Poaa”, em 2018. “Junto com seus pares, Bamba Pana usa um laptop e um software pra atualizar o estilo local, geralmente acústico e instrumental do singeli, informatizando seus ritmos e melodias pras necessidades das multidões mais jovens e contemporâneas de uma maneira direta”, diz o informe do disco.

“O singeli está em dívida com muitos outros gêneros musicais nativos da Tanzânia”, aponta Kale: “o bongo flava, uma marca local de hip hop que era grande no final dos anos 1980; Mchiriku, que floresceu no bairro de Mwananyamala, em Dar Es Salaam, no mesmo período, e contou com jovens produtores usando teclados baratos da Casio pra reinterpretar melodias tradicionais da Tanzânia; e Segere, que apresenta versões improvisadas da música tarab e soukous, uma forma de música congolesa, produzida eletronicamente em alta velocidade. Singeli também se baseia no gênero segere, que é uma reinterpretação eletrônica da música da tribo Zaramo da Tanzânia”.

“Você pode traçar essa polinização cruzada musical na Tanzânia pra cena musical kigodoro. ‘Kigodoro’ significa literalmente ‘colchão de espuma’ em suaíli; assim chamado porque, depois de festas barulhentas, os ravers esgotados desmoronavam onde dançavam e dormiam em pedaços de espuma. Foi nessas festas que todas as diferentes micro-cenas que se infiltraram no ecossistema musical da Tanzânia se tornaram um redemoinho e deram origem ao som de singeli em 2006. ‘Os MCs cantavam sobre os obstáculos de estar no gueto, com uma certa dose de humor'”, Dilsizian diz a Kale.

As dificuldades de emprego e ascensão e reconhecimento sociais não são muito distantes dos jovens periféricos que fizeram do funk brasileiro do século XXI e das aparelhagens a sua forma de expressão – na música, nos versos, na dança, nas festas. Lá como cá, jovens vivem à margem do acesso à educação, à cultura, ao lazer e ao esporte. Fazer do seu jeito e construir uma forma de circular as ideias e a criação, sem o apoio do sistema estabelecido, unem as duas frentes de países muito distantes.

Apesar dessas semelhanças, o produto brasileiro tem uma possibilidade de mercado expressivamente maior. Aqui, temos pouco mais de duzentos milhões de pessoas. Na Tanzânia, são cinquenta e dois milhões de habitantes. Em teoria, não precisaríamos nem exportar o produto. Por outro lado, enquanto o brasileiro dificilmente fala uma segunda língua, na Tanzânia os idiomas oficiais são o suaíli e inglês, o que de certa forma contribui pra expansão internacional de sua arte.

Porém, é preciso uma alavanca. Esse apoio e trabalho bem realizado vem da Nyege Nyege Tapes de Dilsizian, que contribui pra que a mensagem ultrapasse fronteiras.

Kale conta em seu texto: “a Nyege Nyege Tapes nasceu oficialmente na capital de Uganda, Kampala, no início de 2017. O objetivo inicial era ‘mostrar todos os artistas e músicos com os quais estivemos trabalhando nos últimos dois anos em nossas festas e boates’, de acordo com Dilsizian. Desde então, no entanto, o nível de ambição aumentou. A marca agora está focada, como diz Dilsizian, em ‘explorar toda a música inovadora que estávamos descobrindo na África Oriental, bem como uma plataforma pra mostrar colaborações e a produção de residências musicais que mantemos em nosso estúdio em Kampala'”.

Sobre a repercussão de “Sounds Of Sisso”, Dilsizian conta que ficou “impressionado com a reação ao lançamento: ‘caiu como uma bomba. Era provavelmente muito diferente das expectativas da maioria das pessoas sobre o tipo de música que poderia sair da África Oriental'”.

“O tipo de música que poderia sair” é um jeito bem singelo de resumir preconceitos. Feche o olho, imagine uma cidade qualquer da África e provavelmente você terá a mesma imagem que um europeu ou estadunidense comum tem de uma cidade na América do Sul, sem levar em conta que nos dois continentes existem muitos polos de inovação, pesquisa, criação cultural, tecnologia, e não só pobreza, animais exóticos, calor e mosquitos. O “tipo de música” entra nessa conta: batuques, tambores, tribos cantando? Nada disso. O singeli, como o funk brasileiro do novo século, é uma expressão moderna, com recursos eletrônicos, fruto do milênio em que nos encontramos, com todo o desequilíbrio social, ferramental tecnológico e acesso à informação.

Com um ousado cronograma de lançamento, o selo entrou 2019 com “a ambição de levar a vibrante cena eletrônica da África Oriental pra um público mais amplo. Mas este não é um novo movimento, apenas um que está muito atrasado em algum reconhecimento dos amantes da música internacional. ‘Dar Es Salaam tem sido um centro de inovação em música eletrônica nos últimos quinze anos’, explica Dilsizian. ‘Agora, pela primeira vez, um gênero de música eletrônica de Dar Es Salaam atraiu o interesse da comunidade musical underground no Ocidente'”.

O Guardian, jornal sempre atento da Inglaterra, fez um artigo sobre a cena singeli no final de 2018: “o estilo tem ricocheteado em torno dos guetos de Dar es Salaam por quase quinze anos, com linhas de sintetização desenfreadas, percussão variada, frequências alienígenas e fluxos líricos de super velocidade. Não é tão underground agora, como você poderia esperar. Na Tanzânia, o singeli se tornou mainstream, como a música de Drake ou Kendrick Lamar. Há o singeli de artistas como Msaga Sumu e Man Fongo, cuja música é mais lenta e mais parecida com o bongo flava, o último grande som a varrer o país. A Sisso Records, no entanto, tem um estilo intransigente”.

“O estilo se espalhou pra Europa, defendido como uma das mais estimulantes variedades emergentes de dance music, em 2018, graças à compilação ‘Sounds Of Sisso’. Neste verão, várias estrelas singeli já tocaram em festivais como o Unsound, na Polônia, e no Panorama Bar, em Berlim”, segue o Guardian, pela caneta de Kate Hutchinson.

“Dirigindo por Dar Es Salaam”, ela segue, “ouço singeli ecoando de motos-táxi e barracas de comida na beira da estrada. Abbas Jazza gerencia a Sisso Records e também é, convenientemente, um motorista de táxi. Ele me leva ao QG da gravadora no subúrbio de Mburahati. O estúdio confortável fica em um beco, aninhado entre casas de tijolos cinza com telhados de metal corrugado. A mãe e o bebê de Sisso moram ao lado. Oito ou mais artistas e produtores, incluindo Sisso, Jay Mitta, MCZO, DJ Longo e DJ Bamba Pana, entram e passam um saco de salgadinhos. Também há mulheres jovens na cena, incluindo MC Card Reader e MC Memory Card, embora não possam estar aqui porque ainda estão na escola. Sisso, 24, parece envergonhado em responder perguntas, com Jazza traduzindo pra todos, mas quando ele fala, ele tem a retórica de um astro do rap. ‘Esta é a nova tradição, a nova cultura da Tanzânia’, diz ele sobre o singeli. Ao contrário de outros sons anteriormente populares aqui, o singeli absorveu estilos vernaculares como o taarab, o vanga, o mchiriku, o segere, juntamente com o hip-hop e o kwaito sul-africano”.

É a música da juventude. O jovem gosta de dançar e muitas escolas contratam os DJs pras festas dos alunos. “É surpreendente imaginar uma trilha sonora de escola quando você considera que Sisso e sua turma fazem música em um ritmo de 200 a 300 BPM”, diz Hutchinson, “mas o som foi derivado da dance music que foi incensada em casamentos e reuniões sociais no gueto”.

Mitta, uma das produtores do Sisso Studios, diz que “o singeli surgiu do desejo de ser diferente quando recursos, como instrumentos musicais, eram limitados. ‘Não tínhamos formas de fazer música’. Em vez disso, nos primeiros dias, eles pegaram as seções instrumentais de taarab, uma música costeira com as letras suaíli e uma influência árabe de Zanzibar, e depois fizeram um loop e as aceleraram. Eles gravariam MCs – cujas letras são sobre a vida na rua e questões que afetam jovens tanzanianos – usando telefones celulares. Bamba Pana diz que o resultado é que o singeli ‘parece local, como se fosse a nossa música'”.

Os estúdios caseiros, essencialmente improvisados, cresceram e se profissionalizaram. Há um bocado de gente vivendo disso na Tanzânia, como aqui, nas festas periféricas que estão ganhando o “centro expandido” das capitais. Se os MCs brasileiros já possuem reconhecimento fora do país (certo, MC Kevinho?), no Brasil a coisa ainda faz a elite cultural torcer o nariz, salvo pouquíssimas exceções.

O que a história ensina, entretanto, é que um movimento cultural popular não consegue ser parado, em qualquer lugar do mundo.

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