No fim da minha adolescência, eu fiquei muito empolgado com a enxurrada de músicas e resenhas disponíveis quando tive, enfim, uma Internet realmente boa que me permitisse acessar rapidamente sites de dados e avaliação musical. A glória de poder escolher desde os discos mais ouvidos do mundo aos subestimados encheu-me com uma possibilidade que parecia incompleta: como ouvir tanta música e, acima de tudo, como assimilar tanto conteúdo?
Outras vozes, ritmos improváveis, discordâncias e a expectativa de um futuro musical utópico: ser um ponto perdido entre tantos tentando captar e apreender alguma essência de informações tão velozes quanto fugidias. Ainda que fosse minha primeira experiência de relacionar as redes sociais (o Orkut iniciava seu decaimento) com o consumo de cultura (os sites de relacionamento em conjunto com as resenhas e avaliações: rateyourmusic.com e sputnikmusic.com), a sensação de oportunidades infindáveis nunca apagou completamente uma faísca de desapontamento com a impossibilidade de captar a essência de qualquer coisa.
Em sequência desse início de desapontamento, começaram a surgir os comentários anônimos trolando ou memetizando qualquer opinião própria a partir da minha figura. As respostas não eram mais em relação ao conteúdo que eu divulgava, mas em relação à minha persona online, ou seja, ao que eu aparentava ser a partir de uma lida rápida em meus gostos e descrições de perfil. O conjunto de perfis com nomes genéricos e sem fotos eram (e continuam sendo) como um painel pra lembrar constantemente que nada online é palpável. Os procedimentos desses chamados trolls e memes não escapam da mesma origem alienante: ironia ou depreciação ao máximo possível. A abordagem violenta a partir de palavras (Tyler, The Creator discordou disso) como constância escapatória cria na rede mundial de computadores um fator intrínseco ao chamado consumo cultural: um fantasma permanente que predomina em qualquer ambiente social cibernético.
Além dessa violência, há uma perspicácia mais suave e teoricamente mais “intelectual” com deboches realizados a partir da livre-associação de ideias, que dificulta estabelecer qualquer hierarquia do que “incomoda mais”. Por seu turno, o simbolismo anônimo dá a essas pessoas uma liberdade ridícula que nunca experimentariam nas suas interações sociais fora da rede. Longe de ser possível, pelo menos pra mim, estabelecer uma identificação social do porquê disso acontecer, estar online faz com que as pessoas cedam não mais às opiniões ou discussões saudáveis, mas à ridicularização de quem também passa, como elas, um tempo considerável em frente ao computador. É como tacar uma pedra no espelho e, com os estilhaços, inferir lesões ao outro. As mensagens têm as mesmas intenções, apenas variando a quem elas são direcionadas. Assim, as comunicações estão sendo realizadas entre as manifestações virtuais que são sempre, sem exceção, mediadas por mercadorias e comodidades. Basta conferir a exacerbação das interações possíveis nas redes sociais pra perceber como as coisas passaram a girar em torno do zeitgest da opinião e da autoidentificação – como é possível se autoidentificar quando o plano de fundo pra sua localização é um oceano sem fim de máscaras e avatares? Mesmo na comunicação com as pessoas que sabemos serem reais, estamos em contato apenas com o ponto-simbólico delas e estas, é claro, passam o mesmo conosco. Pra que estou passando dias em frente ao computador, interagindo com manifestações intrusivas de pessoas que podem ser tão reais quanto minha imaginação?
No meu caso, tenho passado muitas horas por dia realmente em frente ao notebook e sempre que me demoro mais sobre o assunto, deparo-me com a seguinte situação: por que interagir com todos os outros simulacros e por que a música media isso? Além disso, a aparência é sempre derivada de outra aparência: perfis e perfis virtuais falando sobre lançamentos também virtuais com críticas e rebatimentos dessas críticas que só serão reproduzidos em um fórum cuja https será esquecida em poucos dias ou semanas. Embora todas essas manifestações devam ocultar uma movimentação-verdadeira, é cada vez mais indiscernível saber o que está a serviço de quem: se a música é lançada pra ser comentada, se as críticas são escritas pra serem lidas ou se não está tudo embutido no produto-Internet como forma de pré-ingressar em espaços determinados. Espaços virtuais, ilimitados e vazios. O que ele apresenta depois de encerrada a conexão é muito difícil de se lembrar, improvável que tenha deixado rastros maiores do que sensações efêmeras e perdidas com o computador desligado.
A história também é, claro, um rastro difícil de se superar e cujo fantasma está toda hora nos assombrando. Ademais, ao longo dessas interações, cada um traz consigo os próprios traumas e marcas pessoais. Na Internet, esses três elementos (história, individualidade, representação) encontram-se relativizando qualquer comentário e deixando tudo difuso e borrado, como se nossas histórias pessoais (e consecutivas opiniões) fossem deturpadas e distorcidas a ponto de elas serem sempre outra coisa. Sabe-se apenas da presença do outro, porém sua bagagem é inacessível e assim a materialidade alheia torna-se incompatível com algo que não o espectro de uma presença. A falta de correspondência evidente entre o que poderia materializar uma sensação de presença faz com que apenas as aparências sejam consumidas: as músicas e as opiniões tornam-se plano de fundo pra um “sempre agora” extremamente descartável. Além disso, as reações passam a ser pautadas na estranheza e na indisponibilidade da compreensão surge o receio da comunicação (o que talvez explique, em parte, os trolls e os memes). Tendo isso como base pra qualquer relação online, fica difícil crer que as conexões possibilitadas pela Internet não passam de aleatoriedades geradas apenas pro consumo das próprias interações, não importa o conteúdo.
O rastro histórico é a formação-maior, que desenvolveu a sociedade e influenciou a forma como nossos pais e professores nos educaram e a maneira como nos relacionamos com nossos contemporâneos desde muito jovens. Em cada uma das esferas que intermedeiam as relações online encontra-se um lapso: se as certezas históricas são totalmente dizimadas pela quantidade de informações, as histórias pessoais tornam-se notas esquecidas por um meio de comunicação que viraliza o passageiro e glorifica a falta de estrutura.
Assim, dessa falta de referências e navegando em superfícies virtuais, surge um gênero baseado em samples, sintetizadores altamente manipulados, processamento de música corporativa, de elevador e shoppings centers, através de um material amplo baseado na música pop, no R’n’B contemporâneo, no funk, no easy jazz e no easy listening: o vaporwave ou os “eccojams”.
Procurando na rede, constam diversas origens do vaporwave (desde a música indeterminada aos comerciais japoneses dos anos 80). Eu acho válido falar que vaporwave talvez seja o estilo musical que melhor representa nossa hiper fragmentação, uma vez que não conseguimos mais viver no momento histórico e fomos lançados à superfície sem retorno do consumo online. O que se revelou pra mim a partir da escuta de diversos discos desse nicho é uma maneira simples (no quesito de produção) de criar um tipo de música que relativiza extremamente o real, com uma nostalgia impossível de se recuperar e um futuro cuja construção é a repetição confusa de um passado que só existe em nossas memórias.
Se há alguma espécie de enfrentamento no gênero, ele é difuso por excelência: a não cobertura dos principais sites faz com que ele se propague, também, como um fantasma nas plataformas de compartilhamento musical, tal como Bandcamp e Soundcloud, além de seus inúmeros fóruns espelhados pela rede.
Tal e qual o https esquecido que citei acima, os trades do vaporwave garantem o autoconhecimento de sua temporariedade supérflua, referenciando o passado enquanto a partir da sua matéria morta modula, afetivamente ou satiricamente (muitas vezes ambos ao mesmo tempo), sonoridades instigantes que remetem à nostalgia do pretérito imperfeito, como se nossa relação com o passado fosse modulada progressivamente. As reiteradas repetições e a música muitas vezes inofensiva (no sentido de não agredir os ouvidos) criam um eco que se relaciona com nossa memória afetiva, nosso histórico de consumo e o desconhecimento do tempo histórico no qual vivemos. Mesmo tendo diversos discos que são considerados marcos, a falta de cânone instituído (ou talvez isso ainda esteja em construção, afinal o mais comentado é que vaporwave “nasceu” em 2010) exige que os criadores, produtores e músicos busquem referência em absolutamente tudo o que os formaram enquanto indivíduos capitalistas.
O pouco tempo de vida do vaporwave depõe a seu favor neste sentido: ele pode ser a representação caótica de uma era na qual se vive subjugado pelas mercadorias e o étnico-nacionalismo (criptofascismo) reascende enquanto alternativa econômica. Um gênero tão novo jamais poderia responder questões tão caras e complexas, mas ele pode ser um aprofundamento das estéticas que foram bombardeadas pela comercialização constante de qualquer reduto produtivo. Se a posterioridade parece impossível porque se vive no ultrapresente, os símbolos que nos rodeiam são testemunhas desse labirinto consumista que nos encontramos. O esquecimento enquanto ferramenta criativa, porque não há precisão nas produções de vaporwave: elas são retalhos de diversas épocas todas marcadas pelo consumo. O empenho em criar constantemente coisas tão bizarras (memes etc.) mostra que não há um direcionamento pro tempo livre. Que estamos à mercê de qualquer afinidade histórica. A falta de direcionamento dá esse tipo de liberdade aos seus criadores.
Destaca-se a obsessão com o passado não como forma de pensar um outro futuro e assim reestruturar o presente, mas como algo totalmente proposto pela economia. É necessário, aparentemente, consumir o passado. (por isso as reprises de série dos anos 80 e 90 na Netflix, por isso as séries novas – “Stranger Things”, “Mr. Robot”, “Legion” etc. – têm uma estética totalmente saudosista).
A expansão do capital pelo desejo coletivo de regressão. Mas especialmente “Mr. Robot” se assemelha com o vaporwave em uma linha do saudosismo: esses tipos de mídias tentam criar vácuos e distúrbios na memória coletiva a partir da exibição de uma ruptura, denunciando o consumo, reexibindo um passado movimentado pela inércia. A regressão se opera no tom discordante de sua própria origem. Ressaltar essa ligação forjada pelos bens de consumo com o passado me parece um tema importante no vaporwave e que merece maior atenção.
O acesso livre a praticamente qualquer tipo de conteúdo ressalta um estancamento caracterizado como consumo superficial de informações. Se o passado em nosso imaginário é algo estagnado, o presente também o é, pois é construído basicamente de sobreposições de conteúdo. As palavras perderam valor enquanto ferramentas de uma estrutura maior e coesa pra uma diversidade sem-fim de interações que estimulam uma atenção imediata. O sistema capitalista funda uma falsa conexão com o passado pra que sua própria expansão continue. Os padrões pro consumo são esses, não importa o tipo de música que mais nos agrada.
Eu posso estar errado ao assumir que o vaporwave pode provocar uma espécie de despertar dessa viciada consciência automática de consumo, mas pelo menos eu tive a impressão de encontrar uma inquietação nessas revisitações desconexas com o passado. Minha memória afetiva não precisa se reconhecer nos lanches do McDonalds ou nos comerciais repetitivos do Posto Ipiranga. Deve ter uma alternativa. A proposta do vaporwave não é a mera resignificação, mas expor como nosso espírito de época foi forjado pelas mercadorias. Se a realidade é virtual e se o virtual é construído através de relacionamentos forjados, estes podem adquirir uma carga menos automática quando livre de seus vícios de consumo. Pelo contrário, estaríamos num passado onipresente e, pior que tudo, fabricado.
Leia aqui a segunda parte do artigo: “Vaporwave 2 – A Ideia de Perfeição É Apenas Aparente”.