“Pertuis” é, de acordo com Cadu Tenório, cabeça do VICTIM!, “um vinil sete polegadas lançado por um selo nacional, o Estranhas Ocupações, de Recife“.
São dois temas característicos do VICTIM! (noise extremo), um de cada lado.
A impressão em vinil é algo raro pra Cadu, aqui no Brasil: “você deve ter reparado que a maior parte dos trabalhos do VICTIM! tem saido lá fora, com exceção do ‘Pupila’ e agora desse ‘Pertuis’, achei foda ter a oportunidade de lançar a primeira bolachinha do projeto aqui no país e rolou. São dois lados de pouco menos de seis minutos cada”.
O vinil já está à venda.
O trabalho, como de costume, foi gravado, executado e mixado por Cadu Tenório, dessa vez no estúdio 503, em outubro de 2014, e, também como de praxe, masterizado por Emygdio Costa. Ambos fazem parte do essencial Sobre A Máquina.
A história que envolve esse trabalho é impressionante. No encarte do disco, há o relato escrito pelo próprio Cadu, que de tão rico e curioso, reproduzo aqui:
“Carlos Pertuis (1910-1977)
Carlos nasceu no Rio de Janeiro, em 1910. De estrutura física frágil, psicologicamente imaturo, era muito apegado à mãe. Uma natureza sensível e religiosa. Tinha instrução primária, gostava de ler. Com a morte do pai, deixou de estudar e foi trabalhar numa fábrica de sapatos.
Certa manhã, raios de sol incidiram sobre um pequeno espelho de seu quarto: o brilho extraordinário deslumbrou-o, e surgiu diante de seus olhos numa visão cósmica – ‘O Planetário de Deus’ -, segundo suas palavras. Gritou, chamou a família, queria que todos vissem também aquela maravilha que ele estava vendo.
Foi internado no mesmo dia no Hospital da Praia Vermelha, em setembro de 1939.
Em 1946, começou a freqüentar o ateliê da Seção de Terapêutica Ocupacional, trazido por Almir Mavignier, que soube que ele guardava em caixas de sapatos na enfermaria os desenhos que fazia.
A visão do ‘Planetário de Deus’ ficou para sempre gravada. Logo que teve oportunidade de pintar, oito anos depois da incandescente visão, Carlos, movido por forte necessidade interna, tentou representá-la sobre o papel com os meios precários de que dispunha – ele, um sapateiro que nunca havia pintado. O centro da imagem é uma flor de couro, símbolo do sol e da divindade (…)
(…) Quatro meses antes de sua morte, configura a ‘Barca do Sol’, presente em numerosos mitos.
‘A face do sol é serena e triste. Ele vai navegar na noite e lutar contra os monstros que incessantemente esforçam-se por impedir seu renascimento. Através de longos percursos na escuridão, tal como aconteceu a Carlos, surge, como um fio condutor, fio tênue que às vezes parece ter-se partido e ter sido tragado pelo abismo, o ‘Princípio de Horus’, isto é, o impulso para emergir das trevas originais até alcançar a experiência essencial da tomada de consciência’ (Nise da Silveira).
Já faz alguns anos que descobri o trabalho de Carlos Pertuis. Ele foi um parente distante, primo de minha bisavó.
É a lembrança mais antiga de um artista na família.
Percebi que de certa forma sempre foi um tabu familiar falar dele por conta da internação. Mas as ironias do destino me levaram a algumas sessões de terapia no mesmo hospital psiquiátrico em que é mantido o ‘Museu de Imagens do Inconsciente’, no Instituto Municipal Nise da Silveira. Lá são mantidas obras de internos e ex-pacientes. Entre eles um dos destaques é o próprio Pertuis.
As incríveis mandalas e o sol tão presentes em sua obra me fizeram querer saber mais sobre sua vida e arte.
Resolvi questionar meus familiares a respeito, mas a única coisa interessante que descobri foi que meu bisavô guardava um antigo desenho feito por Pertuis em algum lugar de sua casa, como se fosse um tesouro, muito bem escondido.
Minha vó me conta que chegou a ver esse desenho, e que tentou pedi-lo de presente a meu bisavô, pra emoldurar, mas ele não cedeu. Nunca tive oportunidade de ver essa desenho. Algum tempo depois, meu bisavô veio a falecer e a casa em que ele morava foi revirada. Jogaram todo ‘excesso’ de papel e livros antigos fora. Quando tive oportunidade, procurei com minha avó por toda a casa. Não encontramos nada. Na minha cabeça ficou o fascínio com que ela tentou descreve-lo para mim.
Só me restou então imaginar, não só o desenho ‘perdido’, mas tudo que envolve essa figura tão peculiar pra mim, tento imaginar seus anseios e medos naquela época e por conseqüência acabo chegando aos meus próprios.
Tentei colocar tudo aqui, desde a arte que fiz com minhas próprias mãos, em preto e amarelo, até conteúdo sonoro dos dois lados desse pequeno vinil”.
É um disco extremamente pessoal, como se percebe. A imagem que abre esta publicação é justamente a capa e a contracapa, no formato aberto.
Ouça na íntegra:
Lado A
1. Planetário De Deus
Lado B
1. Barca Do Sol