“Começou faz umas duas semanas.
“Da noite para o dia, ele ficou muito mais recolhido do que de costume. Tudo assustava ele. Qualquer som fazia ele perder a paz. A cada passo temeroso que ele arriscava, eu notava uma insegurança que ele nunca tinha mostrado antes.
“Não demorou para que eu entendesse qual era o problema: ele estava no meio de um processo inesperado de perda de visão, que se acentuou drasticamente do nada. À medida que a percepção visual dele ficava mais nebulosa, embaçada, indefinida, sua alegria também sumiu. Nossos pequenos rituais não eram mais possíveis. Tentei interagir com ele como sempre fiz desde os primeiros dias em que estivemos juntos, obviamente de uma forma mais devagar e comedida do que antes, mas os reflexos já não estavam lá. Em vez de trazer calma, minha tentativa de simular a antiga normalidade só o deixou ainda mais abalado.
“Hoje, quando cheguei em casa, ele rosnou como se eu fosse um estranho. Nem o som da minha voz fez com que ele me reconhecesse. Me abaixei, ofereci as costas da minha mão para ele. Só assim ele conseguiu me identificar. Talvez eu esteja vendo coisas onde não existe nada, mas realmente me pareceu que ele ficou constrangido e sentido por não ter percebido logo quem eu era.
“Estou tentando não me abater, tentando transmitir a força que eu sei que meu amigo precisa nesse momento. Me identifico em voz alta toda hora. Sempre aviso quando vou encostar nele, quando chega a hora de aplicar os remédios que eu torço que tragam de volta um pouco da sua capacidade de enxergar. Descrevo o que está acontecendo, quem está por perto, o que ele está prestes a comer. Não sei se estou fazendo a coisa certa.
“Torço para que os meus monólogos façam algum sentido aos seus ouvidos. Faço isso para que a minha presença o conforte de alguma maneira. Para que ele tenha a segurança de que eu seguirei ao seu lado como guia, como protetor, como família, como quer que ele precise de mim.
“Algum bem, alguma diferença para alguém eu tenho que fazer nesse mundo”.
O início de “Breu”, single lançado por Jair Naves neste 6 de agosto de 2021, é desesperador, apesar da voz calma e antipânico do artista. Ninguém sabe o que fazer ao ver pessoas queridas ou animais queridos definhando, partindo, chegando ao fim.
“Breu” é sobre o fim. A dor é uma escuridão. A incapacidade de agir é uma escuridão. Naves tem a incrível capacidade de transportar pra música, especialmente pras letras, sensações, sensibilidades, sentimentos.
Aqui temos mais um exemplo dessa habilidade. Espero que tal habilidade o faça lidar melhor com a dor que todo mundo precisa enfrentar.
“Breu” chega quatro meses depois de “Vai”, outra faixa lançada pelo impecável este ano (ouça aqui).