Vitor Colares já tá na estrada há um tempo. Foi um dos fundadores do Fossil, quinteto que lançou dois discos, o “Insônia”, em 2008 (ouça aqui); e o ótimo “Mocumentário”, em 2012 (ouça aqui), que conseguiu uma boa repercussão. Gravou também com a 2fuzz, com Daniel Groove, Montage e coloca etecetera aí.
Foi com o Fossil que mais rodou. “Fui de Curitiba a Sobral”, lembra, em conversa exclusiva com o Floga-se. “Morei em São Paulo por cinco anos, daí voltei pra Fortaleza” e nesse interim Colares começou a produzir os próprios trabalhos.
Já são três discos: “Saboteur”, de 2012 (ouça aqui); o incrível “Veredas: Cores E Sinais De Cavalos” (um dos 50 discos que o Floga-se selecionou no primeiro semestre de 2015) e agora esse excepcional “Eu Entendo A Noite Como Um Oceano Que Banha De Sombras O Mundo De Sol”, lançado em 11 de janeiro de 2017. Isso sem contar o “Violação Da Propriedade Privada”, que assina como Cozilos Vivos (ouça aqui).
Os três álbuns têm em comum o jeito bem particular de Colares juntar poesia com guitarra e efeitos. “Acho que trouxe essa marca das experiências anteriores e as (experiências) ‘durante’ também. Tipo, o ‘Saboteur’ foi produzido e gravado durante a mixagem do ‘Mocumentário’, do Fossil. E acho que (minha obra-solo) também tem a ver com um lugar pra experimentar algo que não rolava exatamente em outro lugares”, diz Vitor
Essa “experimentação” é uma espécie de radicalização do próprio processo. Se em “Saboteur”, Vitor soava mais rock’n’roll padrão (embora não fosse); em “Veredas…”, ele se aprofundou nos efeitos de guitarra e ambientações; enquanto no “Eu Entendo A Noite…” a mistura de música popular, ambientações e ruídos de guitarra completa uma espécie de ciclo.
De fato, “Veredas…” foi o disco que primeiro trouxe à tona o potencial de Colares. Ali transpira a sensação de ser um trabalho que só poderia ser feito por alguém muito sozinho, solitário (no sentido de solidão auto-provocada). Em contrapartida, “Eu Entendo A Noite…” parece muito mais vívido, tem “noise” e quase não tem “ambient”, e tem muita “brasilidade”, no melhor sentido do termo. Ou seja, no primeiro disco ele apresentou o básico, daí então ele radicalizou e agora aprimorou a linguagem.
“Fui descobrindo mais sons dentro desse lugar menos coletivo, nas produções desses meus discos”, diz. “Estes discos são registros importantes pra mim, me situam. É como se fosse o cordão amarrado no início do labirinto antes de entrar. Que eu posso puxar de volta e revisitar esse caminho. O ‘Saboteur’ foi descoberta, eu tava descobrindo muita coisa, e redescobrindo tudo. O Cozilos e o ‘Veredas…’ são um lugar de experimento. Eu quis investigar bastante que sons eu poderia tirar e fazer”.
Já “Eu Entendo A Noite Como Um Oceano Que Banha De Sombras O Mundo De Sol” tem “uma união dessas experiências”, segundo Colares. “É um álbum mais ‘canção’, apesar de tentar evitar os clichês dela, da canção. Mas também mantendo uma fidelidade crua. Eu ‘canto’ mais nesse disco, uso o recurso do canto mesmo. No ‘Saboteur’ tem umas coisas faladas e mais músicas sem voz”.
“Eu Entendo A Noite Como Um Oceano Que Banha De Sombras O Mundo De Sol” é uma frase da música “Beira Mar”, de Lula Côrtes e Zé Ramalho, do disco “Zé Ramalho 2”, de 1979.
Esse é o tipo de “brasilidade” que Colares buscou no disco. E conseguiu. Faixas como “Carnaval” e, principalmente, a bela “Vermelho Azuzim”, têm aquele sentido de canção de ninar que os avós embalam seus netos em noites quietas e estreladas do interiorzão do país.
“Acho que a brasilidade talvez esteja mais no respeito pela canção. Ao fazer um disco de canção a gente sempre tende a colocar logo a canção nesse lugar do mais radiofônico possível. E eu tentei gravar este discos algumas vezes e recomeçava porque via que ia chegar nesse lugar radiofônico. Em outras tentativas, tinham mais pessoas envolvidas e daí eu sentia dificuldade. Se tornava uma tendência ter uma batida, já crescer no refrão, já ter um teclado ‘fazendo cama’, fora as levadas rítmicas que começaram a me incomodar. Aí, tirei a bateria de muitas músicas e foi ficando assim”, explica.
Por outro lado, Colares também não breca o ímpeto de soar ruidoso, como em “Solidão” e em “Portentosa”, com uma incrível guitarra sonicyouthiana ou velvetiana, como preferir.
Nesse sentido, é possível dizer que há uma proximidade com a linguagem que a turma do Metá Metá de Kiko Dinucci e companhia apresentam há um tempo. O próprio Colares gosta bastante dessa turma: “principalmente do segundo disco do Metá Metá (o já clássico ‘MetaL MetaL’, de 2012)… O ‘Encarnado’, da Juçara Marçal também é pérola. Aquele ‘Aganga’, do Cadu Tenório com ela, é lindo. Gosto também do segundo disco da Ava Rocha, é poderoso. Acho que a temática geral é melancólica e isso é bem Brasil. Eu gosto muito das coisas brasileiras tristes. As letras e tristeza no som. E isso me influencia muito”.
No caso de “Vermelho Azuzim”, que versa sobre uma superlua vista no sertão, narrada por uma amiga, Juliane Peixoto, creditada como autora, a letra é uma peça poética a parte: “gosto de ler letras como se fossem um texto. Ler mesmo, como se fossem uma carta ou um recado. E no Brasil tem uns mestres nisso”, diz, antes de listar influências marcantes, como o próprio Zé Ramalho, além de Jards Macalé, Waly Salomon, Maria Bethânia, Caetano Veloso (“cada vez mais”), Tom Zé, Cidadão Instigado e os gringos Nirvana, Radiohead, Ornette Coleman, Miles Davis, Portshead, Morphine, Massive Attack, Björk… A lista é enorme, mas toda ela faz total sentido ao ouvir a música de Colares: parece que todos esses nomes estão de alguma forma ali.
Ouça o disco na íntegra:
Fernando Catatau, do Cidadão Instigado, está presente no disco em duas músicas, tocando guitarra – em “Carnaval” e “Jardim Suspenso”.
Ele gravou as músicas em seu estúdio e enviou pra Colares inserir no disco. “A gente começou a se aproximar quando eu ainda morava em são Paulo. Quando ele voltou pra Fortaleza, eu já tinha voltado. Ele assistiu a algumas apresentações minhas, dessas que eu fiz sozinho, e chegou junto dizendo que se eu quisesse podia contar com ele na gravação pra colocar umas guitarras. Achei foda, uma honra! Admiro muito o que ele faz e mais ainda a pessoa que ele é. Eu quis nessas músicas um guitarra que não fosse minha. Algo até com uma pegada mais clássica de guitarrista. E ele é um guitarrista cheio de personalidade e com um som muito peculiar”.
Outra “participação” especial é do cineasta lituano Jonas Mekas, que nasceu em 1922 e cedeu diretamente o direito de Colares usar a narração do seu curta “Song Of Avignon”, de 1988, em “Solidão”. Segundo Colares, é “a essência do cinema em oito minutos. Uma ode à vida mais difícil, a dos loucos e dos poetas”.
O filme pode ser assistido aqui, na íntegra:
“O texto é foda. Fala sobre esse mergulho no escuro no qual acredito”, diz. “E este disco tem isso, como mote principal. Esse salto no escuro de si mesmo. Por dentro. Cair pra dentro de si mesmo. Cair na noite de si mesmo”.
Eis um trecho, pra ilustrar: “Estou numa densa escuridão, às vezes tenho a impressão que estou afundando. Tento respirar e sinto que minha única saída, minha única esperança, é talvez imergir completamente neste negrume, como em um coma. Não para fugir dele, nem para o observar, mas pra abraçá-lo e ultrapassá-lo”. Podia bem ser um trecho que se refere ao “Veredas…”, um disco bem mais soturno, o que só mostra que a obra de Colares segue uma certa linha lógica de avanço, como se representasse a própria linha do tempo do autor.
Há mais participações em “Eu Entendo A Noite Como Um Oceano Que Banha De Sombras O Mundo De Sol”: Guilherme Mendonça, que toca bateria em “Carnaval”, “Jardim Suspenso”, “O Silêncio É O Espaço Vazio Entre As Bocas” e “Portentosa”, é do Astronauta Marinho, bem como Felipe Lima, que assina a mixagem e a produção do disco junto com Colares e Mendonça. Rodrigo Colares toca sintetizador em “Pistoleto”, “Vermelho Azulzim” e O Silêncio É O Espaço Vazio Entre As Bocas”. A masterização é de Klaus Sena. A capa é de Diego Maia, que faz parte do Chinfrapala.
Há ainda “Jardim Suspenso”, música que Colares escreveu em parceria com Daniel Groove e que já é conhecida na voz de Groove (ouça aqui). Aqui, ela tem outra versão, mais curta e direta.
“Eu Entendo A Noite Como Um Oceano Que Banha De Sombras O Mundo De Sol” é uma obra robusta de um artista em visível evolução pessoal, que jorra sua própria vida e experiência na sua criação. Às vezes, é preciso um pouco de escuridão pra enxergar o caminho a se aventurar. Uma noite calma, um pouco de solidão. Vitor Colares tá nessa fase. A próxima, nunca se sabe, pode ser a do sol.
1. Pistoleto
2. Carnaval
3. Jardim Suspenso
4. Solidão
5. O Silêncio É O Espaço Vazio Entre As Bocas
6. Vermelho Azulzim
7. Portentosa
8. Créditos Finais