Depois de realizar o primeiro show do Primal Scream, no The Adams Arms, em Londres, na noite “The Living Room” de Alan McGee, Bobby Gillespie voltou a Glasgow.
Lá encontrou Stephen Pastel e Nick Low, que faziam ali na Escócia o que McGee estava fazendo em Londres: abrindo espaço pra novas bandas, num local chamado The Candy Club. Ele e o companheiro de Primal Scream Jim Beattie estavam em busca de gente pra tocar com eles na banda. Mas encontraram um outro caminho.
“A gente tava meio apaixonado pelo trabalho de Syd Barrett e coisas do tipo, então Nick disse que tinha dois caras que começaram uma banda com essa pegada. Nick recebeu deles um fita que dizia ‘você pode gostar disso’. Era inacreditável aquele som. Quatro canções: ‘Upside Down’, ‘Inside Me’, ‘In A Hole’ e ‘Taste The Floor’. Pensei que era uma dupla com sintetizadores, tipo Suicide. Era só barulho com aquele cara cantando por cima, um vocal bizarro. Eles se chamavam The Daisy Chain naquele época”, conta Gillespie.
Logo, a banda mudaria seu nome pra The Jesus & Mary Chain, porque, segundo William Reid, “soava como uma gangue psicodélica de rua”. Seu irmão Jim, em entrevista, confirmou a história de Gillespie: “Bobby ouvia Syd Barrett e, pra nossa sorte, nosso número de telefone estava naquela fita, então ele pôde nos ligar e dizer ‘meu amigo McGee, em Londres, provavelmente vai colocar vocês pra tocar lá”.
Na verdade, Bobby ligou pro baixista Douglas Hart. “Ficamos ao telefone por umas três horas. A gente não se conhecia, mas tinha um bocado de coisas em comum – música, filmes, livros, essas coisas. Eles eram as únicas outras pessoas em Glasgow que gostavam dessas coisas, então achei os caras incríveis, era demais”.
Além das artes, Gillespie esqueceu-se de dizer que o que unia aqueles rapazes era a predileção por certas substâncias alucinógenas.
Os irmãos Reid, Douglas Hart e o baterista Murray Dagleish foram pra Londres conhecer McGee, como prometido por Gillespie. O show estava marcado pra 8 de junho de 1984, na noite “The Living Room”, já não mais no The Adam Arms, mas no The Roebuck (número 108 da Tottenham Court Road) – aliás, foi nesse endereço que em julho de 1965, Davey Jones, então com 18 anos, se apresentou pro empresário Ralph Horton, que ficou animado com aquele guri (dois meses mais tarde, Jones mudou seu nome pra David Bowie).
“Não tinha nem PA!”, lembra Jim. “Quase nenhum equipamento e só plugamos as guitarras. Era um dia bem quente. Começamos a passar o som e então eu e William entramos numa baita discussão. Alan, que tinha nos conhecido ali, achou tudo pesado demais porque um rolava sobre o outro numa briga. Ele achou que era o troço mais doido que ele já tinha visto. Quando começamos a tocar, a coisa tava inacreditavelmente ruim. Só que foi aí que ele veio pra gente e disse: ‘caras, vou gravar um disco com vocês!’. ‘Maravilha’, foi o que respondemos. Essa era o tipo de reação que queríamos causar”.
McGee contou (no livro “The Creation Records Story: My Magpie Eyes Are Hungry For The Prize”, de David Kavanagh, lançado em 2000) que os irmãos “estavam perto de chutar a cara um do outro durante a passagem de som, pensei que era um lance imbecil deles, mas então a banda fez versões incríveis de ‘Somebody To Love’ e ‘Vegetable Man’ e eu simplesmente pirei”.
O show ainda tinha apresentações do Jasmine Minks e do Loft. Mesmo assim, apenas dez ou quinze pessoas estiveram presentes nessa noite histórica.
Jim lembrou daquela apresentação numa matéria da Mojo, vinte anos mais tarde: “foi uma barulheira absoluta. Ainda estávamos discutindo, quando deveríamos estar tocando uma música… Havia muita energia reprimida liberada. Anos de frustração. Foi um caos total. As pessoas apenas ficaram de pé e olharam fixamente. Com as guitarras desafinadas, um pedal fuzz quebrado criando um ruído horrível, o PA emitindo gritos estridentes de feedback enquanto lutávamos com o volume, e William Reid tocando de costas pro público, o set durou apenas dez minutos”.
Havia uma certeza entre eles de que ninguém intencionava soar do jeito que aquele show soou, mas pros quinze afortunados que estavam na plateia pareceu tudo, menos caótico: pareceu épico.
Não há imagens ou qualquer gravação desse show específico. Ninguém podia esperar nada daquela banda. Mas não demorou muito pro quadro mudar. A Creation assinou com a banda e logo lançou “Upside Down”, o primeiro single, que vendeu trinta e cinco mil cópias.
O esnobe baterista Dagleish, que queria receber pra tocar mais do que abanda recebia dos clubes, acabou saindo. Bobby Gillespie entrou no lugar (“queríamos a Maureen Tucker, mas ficamos com Bobby”, brincou McGee).
Gillespie não fazia a menor ideia de como tocar bateria. Só que isso pouco importava. De pé, ele batia as baquetas e praticamente ninguém ouvia atrás daquela tempestade de chiados e barulhos. Era só energia. “Ele tinha aquela imagem totalmente rock’n’roll”, disse Jeff Barrett, o primeiro empresário do Jesus & Mary Chain e que depois virou assessor de imprensa do Primal Scream.
Gillespie entrou na hora certa. “Upside Down” colocou a banda e a Creation no mapa. Em 11 de outubro de 1984, em Glasgow, ele estreou como baterista do Jesus & Mary Chain num palco. O Primal Scream abriu a noite (que ainda teve Meat Whiplash e Ochre 5). Bobby tocou nas duas bandas e isso seria o indício da separação que viria a se consolidar mais tarde. No setlist, sete músicas, menos de quinze minutos: “In A Hole”, “Vegetable Man”, “Inside Me”, “The Living End”, “Ambition”, “Taste The Floor” e “Barracuda”.
Nessa época, os shows do Jesus demoravam de dez a quinze minutos, porque ninguém aguentava mais do que isso. E era um verdadeiro caos: show eram cancelados pela polícia, pelos donos dos estabelecimentos etc. Pancadarias não eram incomuns. Dessa forma, a fama do grupo foi aumentando, assim como da Creation de McGee, que na virada do ano, conseguiu uma enorme turnê com a banda e mais outros do “pacote Creation” por Alemanha, Bélgica, Holanda, Dinamarca e Finlândia. Todos se deram bem.
O Jesus & Mary Chain, porém, queria mais. Queria o mundo. E isso a Creation ainda não podia dar. Os irmãos Reid não souberam esperar e assinaram com uma subsidiária da Rough Trade, a Blanco Y Negro, pra lançar o primeiro e histórico álbum, “Psychocandy”, em 1985.
A história de Jesus & Mary Chain, Primal Scream e Creation seguiram seus caminhos de sucesso a partir daí, na maior parte do tempo por vias separadas. Mas o cordão umbilical os une pra sempre.
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O show mais antigo do Jesus disponível na Internet é o de 29 de dezembro de 1984, no London ICA’s Rock Week. Você pode ouvir a baderna de quatorze minutos aqui:
1. In A Hole
2. Vegetable Man
3. Taste The Floor
4. You Trip Me Up
5. Ambition
6. Jesus Suck
Foto que abre o artigo: Valerie Hicks (com Alan McGee à direita, no Plymouth, em 1985)
Foto de miolo de artigo: Andrew Catlin (1984)