ÁCIDAS: A ANTISOCIALITE

Conheci Marlene na faculdade. Mas era como se eu conhecesse desde sempre. Foi um tanto paixão à primeira vista, mas também foi um bocado de admiração por aquela pessoa que exalava segurança a cada respiração. Ela se aproximou de mim com um sorriso de dois quilômetros de dentes ultrabrancos, alinhados, numa boca sem batom, perguntando sobre minha camiseta do Pavement. Nessa época eu fazia umas estampas de camiseta pra levantar um troco. A do Pavement era a mais surrada – o grupo tinha lançado naquela época só o primeiro disco e eu me achava o descolado.

Fazíamos o mesmo curso, mas eu estava um ano a frente. Só que passamos a não nos largar mais. Viramos bons amigos.

Marlene é filha de um sujeito muito rico, dono de uma indústria química. Ela não se dá bem com o pai, ou, como ela mesmo diz, o pai não se dá bem com ela, porque gostaria que a filha fizesse um curso que ajudasse na empresa. Só que Marlene não quer nem saber da empresa e não quer saber da grana do pai. A faculdade ela pagou com a grana do trabalho dela, que na época consistia também em vários bicos, inclusive de DJ em festinhas dos amigos cheio da nota.

É que Marlene sempre se deu bem com a mãe e na década de 80, ainda uma adolescente, pedia que ela trouxesse discos pra ela das viagens ao exterior – e a mãe e o pai viajam muito. Marlene me contava às gargalhadas um tanto saudosas da famosa matéria da revista Bizz, que mostrava Renato Russo segurando o “The Queen Is Dead”, dos Smiths. Ela teve o disco antes daquela matéria e se orgulhava bobamente disso, uma pequena vitória pessoal da adolescência, já que o Smiths até hoje é o seu grupo preferido.

Não foram poucas as vezes que nós, pelados ao sol, passamos o final de semana ouvindo a discografia dos Smiths na baita varandona de um apartamento do irmão dela de frente pra praia de Ipanema, tomando uns drinques e uns apetrechos químicos, conversando de um futuro que nunca chegou a acontecer, pelo menos pra mim, e transando e admirando qualquer coisa.

Marlene recebeu esse nome por conta de Dietrich, a única coisa certa que seu pai fez, conta. Achava que Marlene era “nome de gente rica”. O pai eu vi poucas vezes, já que Marlene o evitava ao máximo. Não foram poucas as vezes que ele tentou arrumar um “bom partido” pra ela. Mas Marlene sempre detestou mauricinhos, “protótipos de Collor”, como ela chamava (hoje seriam os protótipos de Huck, de Dória?). Ainda hoje é solteira por opção.

Só falo com ela pelo celular, porque depois de anos viajando, morando e se sustentando com subempregos em lugares como a Itália, Grécia, Egito, Espanha e Austrália, agora vive na Nova Zelândia e é dona de uma pequena lavanderia, veja só. Continua linda e apaixonada por música. Faz questão de me enviar dicas e mais dicas de bandas desconhecidas, tem essa paixão meio doida de ouvir tudo quanto é tipo de música que seja “estranha” (aspas dela), ao mesmo tempo que adora fazer os gringos requebrarem com o pop mais rocambolesco brasileiro, nas festas que dá por lá, de Anitta e MCs quaisquer a axés “clássicos”.

Quando falei com o editor aqui do Floga-se sobre a história dela e da relação conturbada com o pai, vejo que ela a duras penas saiu vencedora dessa briga de negação com a grana da família. Ele me indicou um livro chamado “Coaching – Ao Encontro De Si Mesmo (Histórias Do Mundo Corporativo E Das Empresas Familiares)”, escrito por Adriana Netto, que conta alguns casos em que essa relação costuma ser problemática e nem sempre tem um final feliz.

Mandei pra ela a indicação do livro e ficamos horas conversando pelo telefone sobre como a música e o trabalho a fizeram ficar ocupada o suficiente pra não se preocupar com isso. Foi a sua terapia. A mãe a ajudou muito também, dando força, mas nunca dinheiro.

Há quatro fixações na vida de Marlene: não ter dinheiro da família, a música, o trabalho e a alegria. Só o primeiro parece exercer certa pressão, o resto é automático, vem com distinta leveza.

Leve como um dos discos que ela acabou de me indicar. “Antisocialites”, dos canadenses do Alvvays, foi lançado em 8 de setembro de 2017 e parece ser um manual de como ser a Marlene. Ela é exatamente uma antisocialite e o som mezzo Camera Obscura, mezzo C86, é uma delícia como as tardes na varanda do apartamento do irmão dela.

Esse é o segundo disco do Alvvays. O primeiro é de 2014 e leva o nome do quarteto e era mais obscuro. Agora, parece, o sol brilhou.

O Alvvays é daquelas bandinhas cujo som os sites modernosos adoram adorar – e de fato adoram. Os indies amam. E nada disso depõe contra. Músicas deliciosas como “In Undertow” (que tem a guitarra de Norman Blake, do Teenage Funclub), “Not My Baby” e a pegajosa “Dreams Tonite” fazem qualquer momento ficar leve e despretensioso.

Muito graças à vocalista Molly Rankin, que mesmo com a voz fraquinha consegue dar alegria ao som que muita gente pode considerar “frouxo”. Exemplo de gala: “Lollipop (Ode To Jim)”, música em homenagem a Jim Reid, um dos criadores do Jesus & Mary Chain, depois que ela cantou com ele “Just Like Honey” num dos palcos da vida. “Lollipop” é o mais “acelerado” que o Alvvays consegue chegar.

Embora não seja um disco sobre felicidade – ou, como um crítico disse certa vez, “não há música do Alvvays incondicionalmente feliz” – é exatamente assim que “Antisocialites” soa. E talvez seja exatamente assim que você vai se sentir.

01. In Undertow
02. Dreams Tonite
03. Plimsoll Punks
04. Your Type
05. Not My Baby
06. Hey
07. Lollipop (Ode To Jim
08. Already Gone
09. Saved By A Waif
10. Forget About Life

Só que o mundo de Marlene não é cor-de-rosa, apesar de tudo o que descrevi e do quadro que pintei. A solidão é sua maior guerra. Longe do irmão e a da mãe, que ela adora, não há sexo, nem satisfação de conquista pessoal que a faça preencher a lacuna. Mas vai-se levando. É por isso que seu rol de indicações não tem apenas os Alvvays e outros filhos de Smiths. Entre as tantas que ela me indica animada, “escuta essa!”, tem uma banda nova chamada Ex Eye.

O grupo lançou seu primeiro disco homônimo esse ano, em 23 de junho, e é uma estranheza só, porque o protagonista é o sax-torcido de Colin Stetson. Colin, pra quem não sabe – e Marlene destacou isso – toca com regularidade com o Arcade Fire e o Bon Iver. Mas esqueça essas referências: o Ex Eye é uma música inclassificável, pós-rock, pós-metal, um “pós-qualquer-coisa” grandioso, como de um mundo pós-apocalíptico em sombras lutando pra sobreviver ao messianismo opressor.

“O Ex Eye faz música sobre poder, controle, movimento e intenção; Música composta com rigor, complexidade. É difícil e pesada – agressiva, catártica e emocionante. Os instrumentos trocam papéis de forma fluida; melodia, harmonia, rife, motor, âncora, combustível”: essa é a descrição oficial. “Anaitis Hymnal; The Arkose Disc” é essa descrição em forma de música.

Fazem parte da banda Greg Fox (bateria), Shahzad Ismaily (sintetizadores) e Toby Summerfield (guitarra), além de Stetson. Todos com bons serviços prestados à música torta, indizível.

Em “Ex Eye”, a dificuldade e a complexidade bloqueiam a atenção de qualquer outra ação. É como se o ouvinte fosse tomado por uma entidade que o impedisse de pensar por conta própria, uma hipnose imediata, um cérebro aberto caldeirão sendo remexido com uma colher de ferro pra então ser servido ao quarteto como alimento pra novas improvisações – e a sensação chega sem qualquer aditivo químico ou etílico.

As longas canções, os títulos estranhos, com climas macabros, uma força de densidade incalculável, tem algo de culto ali, a religiosidade pelo diferente, pela experimentação. É preciso um transe pra compreender?

Conhecendo Marlene, creio que sim, mas experimentei de outra forma: sóbrio, imerso no ócio, no nada. O Alvvays e o Ex Eye lado a lado oferecem o quadro de dois mundos distintos ou de dois mundos que se completam? Ambas as bandas, todos os músicos, ambas as obras fazem parte deste mundo, do nosso mundo. É curioso ser chocado por essa diversidade. Mais: são obras que não se eliminam. Deram liga no mesmo cérebro. Funcionou pra Marlene, funcionou pra mim, espero que funcione pra você.

A viagem que é a vida desprendida dela nos leva a choques dessa natureza. Hoje, ela fincou raízes, passou dos quarenta. Está estabilizada financeiramente. Um dia, vai herdar tudo aquilo que sempre lutou contra. Do seu pai, ganhou o nome, a vida e a vontade de vencer por conta própria. Da mãe e do irmão, o amor e a paixão por viver. Pra ela, bastaria isso. Pra mim, nossas trocas de mensagens sempre trazem algo novo. Do seu desejo exuberante por conhecimento e descobrimento, sempre quero mais. Nunca é o bastante.

1. Xenolith; The Anvil
2. Opposition/Perihelion; The Coil
3. Anaitis Hymnal; The Arkose Disc
4. Form Constant; The Grid
5. Ten Crowns; The Corruptor

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