Trinta anos. Lá se vão trinta anos. Olho-me no espelho e não vejo a menor mudança. Mas é só colocar uma foto daquela época ao lado e perceber que envelheci – e muito. Não é pra menos. Ainda não estou carregado de rugas e cabelos brancos, por incrível que pareça, são poucos (há alguns na barba, que não deixo crescer, então é irrelevante). Pança ainda tá como trinta anos atrás, sem aquela protuberância regada a chope. Coração, idem, exames de sangue ok. A medicina evoluiu, nosso conhecimento de alimentação e cuidados também. Não fossem as duas fotos e o tempo eu diria que sou o mesmo de 1989.
Daqui a trinta anos, certamente, não terei a mesma percepção. Serei um idoso já mais perto do fim da vida do que de avistar alguma perspectiva. Só que em 1989, eu era turbo, achava que sabia de tudo, que podia caminhar na velocidade que imaginasse e que ninguém – nem nada! – podia me parar. Havia muito menos responsabilidades também, é óbvio, o que nos deixa ainda mais com essa sensação de invencibilidade.
Com menos de vinte anos de idade, você não tem a menor projeção do que vai acontecer na sua vida, mesmo que seja forçado pelas circunstâncias a trabalhar/casar/ter filhos/sei lá mais o quê. Nessa época da vida, você pode usar qualquer tipo de substância, que o seu corpo aceita numa boa, como uma experiência válida e não como uma agressão. Você vê o mundo com olhos diferentes. Sente o mundo de um jeito diferente.
Acho que John Squire, Ian Brown, Mani e Reni tinham a mesma sensação quando lançaram “The Stone Roses”, em 2 de maio de 1989. Todos tinham entre vinte e cinco e vinte e sete anos, eram doidaços e queriam ser adorados. Havia uma petulância em ser o melhor, sem se “entregar ao sistema”, uma atitude que atraía os desajustados e prepotentes como eu – e éramos muitos.
O tempo passou e esse lance de “não se entregar ao sistema” se mostrou uma balela, como sempre acontece nesses casos. Mas até aquele momento, ouvir o Stone Roses era um caso de triunfo dos inviáveis. Gente fora dos padrões de beleza, suja, desarrumada e doidaça de drogas podia levantar o dedo do meio pra qualquer imbecil ainda deslumbrado com a “década yuppie” que (ainda bem!) chegava ao fim. Essa galerinha chata pra caralho das Wall Streets da vida, entupida de farinha, estava sendo sobrepujada por um pessoal bem mais desajeitado, entupido de ácido.
Em “The Stone Roses”, tudo parecia fazer sentido – e, como eu me olhando hoje no espelho, ainda faz, não envelheceu, é um apanhado de canções maravilhosamente construídas pra não caducarem. Como conseguir isso? Na base do fazer-como-quer.
Guitarras preguiçosas e rebolantes, com um baixo adocicado pulsando devagar e uma bateria sacolejante, tudo emoldurado por um ar translúcido, davam às onze músicas originais (tem versões com treze, acrescentando o sucesso das pistas “Elephant Stone”, antes de “Waterfall”, e a quilométrica “Fool’s Gold” encerrando o disco) a impressão de uma novidade que ainda persiste décadas depois.
O jeitão mal humorado de Ian Brown antecipou a rabugice dos irmãos Gallagher, do Oasis, mas seu vocal não era agressivo em disco (ao vivo, era outra coisa): era um troço “flower power” sem firulas de paz-e-amor, só com as drogas, o sexo (talvez) e o foda-se pra tudo e todos. Era pra dançar e era pra viajar. Era pra ouvir sozinho e era pra derreter a mente. Era pra se sentir especial.
A bem da verdade, as letras pouco querem dizer. Entre loucuras sobre como as auras brilham, revoluções violentas com ruas solitárias e carros queimando, pessoas submissas, uma sociedade sem perspectiva, o que o Stone Roses queria mesmo era entregar alguma espécie de alternativa a tudo o que os anos 1980 representaram e o que poderia ser um pingo de esperança pra última década do século (esperança jamais confirmada). Talvez se esse disco fosse feito dez anos depois (como os dos Radiohead), ele fosse de extremo pessimismo, afinal mesmo com a avalanche da Internet chegando, a gente já dava sinais de que estava derrotado como sociedade.
Por outro lado, somos otimistas ainda, não? Eu olho minha imagem no espelho e sinto que o tempo não passou. Tem dias que me acho até melhor. Isso não é de um recorrente e teimoso otimismo? Ou, veja, qual sentido faria ainda estar vivo? Talvez seja por isso que “The Stone Roses” ainda pareça tão refrescante e, digamos, “atual”, sem rugas, sem barba e cabelos brancos. É porque em tempos de filmes de super-herói, na época do furacão do hip hop e do rap (a única música punk do momento, a única realmente contestadora), em tempos de “divas” pop pré-fabricadas na mesma forma, em anos de comunicação totalmente impessoal, ter esperança ainda é uma boa moeda em busca de equilíbrio e satisfação – afinal, o que é essa adoração por super-heróis, senão uma busca infantilizada por um salvador da nossa miséria; o que são esses ídolos pré-fabricados e idênticos em beleza e expressão corporal, senão uma reflexo de nossos desejos de identidade; e o que são esses rapers provocadores (e já milionários), senão nossa forma de expressar certa raiva represada pelas injustiças cada vez mais entrelaçadas na sociedade?
Sim, “The Stone Roses” sobrevive. Completou trinta anos nesse maio de 2019 como um senhor rejuvenescido por técnicas simples de recauchutagem da alma sofrida: distribuição de sorrisos, aceitação da beleza como ela é, leveza e esperança de tempos melhores. É tudo o que a gente precisa pra viver bem, em qualquer época que seja.
disco apaixonante, ainda ouço com o mesmo gosto de 30 anos atras