Eu sou fissurado por sonhos. Tenho uma incrível e talvez única habilidade de retomar sonhos sonhados em noites anteriores. Crio uma sequência, por assim dizer. Fico procurando explicações pra eles e me angustia saber que essa é a coisa mais difícil e cruel a ser feita consigo mesmo, já que a mim é inevitável e é algo impossível. Sonhos não têm explicação.
Quer dizer, tem gente que vai dizer que há explicações, sim; a psicanálise tem décadas nesse meio, mas eles só são inexplicáveis porque são incompletos. Sonhos são fragmentos, oras! Sonhos não são como filmes ou peças de teatro: não possuem começo, meio e fim, nem enredo verossímil, muito menos uma lógica narrativa que determine moral, abrace complexidades humanas e todas as coisas práticas que fazem uma história pegar o espectador.
Quando se conta um sonho todo mundo acha um treco maluco porque não há lógica na narrativa deles. Há muitos buracos, as passagens são pulos no espaço, no tempo e na suposição de realidade. Você voa, pilota naves espaciais ao lado de um camelo, luta contra o exército indiano numa praia da Suíça, onde nem praia existe, caça borboletas com aspirinas, cria programas de computador que vão salvar a existência dos biscoitos de água e sal, ao mesmo tempo em que namora e moça mais bonita que tenha cinco metros de altura e não há empecilho algum ao tentar beijá-la, você também caminha por geleiras feitas de açúcar mascavo, mas são geleiras branquinhas ainda assim, você é amigo das suas bandas preferidas, bate na cara de todos os membros do conselho de segurança da ONU que estão sentados contigo numa mesa de bar sujo, e no dia seguinte tudo o que você quer fazer é juntar as pontas desse sonho que você achou divertido, riu, teve medo, se sentiu um herói, mas não consegue, porque eles não sobrevivem no rastro da memória de dois minutos acordado e pronto pra mais um dia massacrante.
É, os sonhos não resistem. Acordados, os matamos sem remorso, certos que outras sandices acontecerão na noite seguinte. E tudo realmente acontece de novo, num ciclo que vai durar enquanto a gente viver.
É por isso que quando ouço a Elis Regina cantando “os sonhos mais lindos sonhei” às vezes me dá um acesso de riso. A música é linda, a letra é igualmente bela, mas só a poesia pode imaginar “sonhos lindos”.
Sonhos são radicalmente ácidos, viagens alucinantes, delírios inclassificáveis, demências perturbadoras. Se tornam “lindos” se a gente quiser relacioná-los a “desejo”. Porque “desejar” a gente sempre deseja algo de bom pra gente. Se desejos são delírios quando estamos acordados, se tornam roteiros muito mais próximos de uma desejada realidade, com sustentação lógica, embora nem sempre longe de uma utopia desvairada.
Daí que existem exceções. Os artistas. Esses distorcedores da realidade, os criadores de uma outra realidade, podem tudo. Sonhar acordados. Literalmente. Podem criar uma lógica ilógica e chamar de arte, pois é algo belo, enfim. Toda aquela alucinação que nós mortais só conseguimos dormindo ou carregados por substâncias químicas, os artistas transformam em realidade.
O que não quer dizer que seja compreensível. Ou como Jack White poderia explicar seu “Boarding House Reach”? Ouvindo o disco, cheio de boas intenções, me parece um sonho que ele teve. Um sonho sonoro que ele achou bom demais pra ficar só no mundo dos sonhos. Foi preciso contar a alguém, mas, cheio de buracos e sem uma lógica qualquer, White teve que preencher as lacunas pra ser algo compreensível e palpável comercialmente (ou artisticamente).
Mas tirando uma ou outra canção “em linha reta” (“Connected By Love”, “Ice Station Zebra”, “Over And Over And Over”), o disco inteiro é um emaranhado de tentativas de explicar o que parece ser inexplicável. Um delírio do próprio artista. Eu sei: quem ousaria dizer que o artista não pode delirar? Ele tem que delirar!
Jack White delirou um bocado aqui, só que não parece que foi no sentido lógica-delírio, está mais no rumo delírio-lógica, onde o artista tenta preencher buracos de uma visão que não se conectava a princípio, pra que ela pareça, um pouco que seja, com algo que possa ser digerido. Assim, há canções declamadas, “Ezmerelda Steals The Show” e “Get In The Mind Shaft” (um samba-balanço que parece criado numa indústria química), canções que experimentam barulhos (“Respect Commander”), canções-White Stripes (como as citadas no parágrafo acima), um lindo blues-torto (“What’s Done Is Done”) e uma canção-clássica (“Humoresque”).
Eis que não sei se seu delírio foi algo bom. Sonhos são ideias inacabadas. Tentar cimentar seus vãos naturais pode até criar uma estrutura sólida, mas charmosa certamente não vai ser. O resultado disforme talvez não faça sentido nem mesmo pra quem conta o sonho pra alguém. Provavelmente quando contar pra outra pessoa o mesmo sonho, tenderá a preencher as lacunas de forma diferente e mais consistente. Se continuar contando, quem sabe, isso pode virar uma história sustentável. Mas será boa – ou, mais ainda, não será apenas um arremedo da loucura sonhada?
Jack White ficou nessa segunda opção. É provável que os remendos vão aperfeiçoar a história toda vez que ele apresentar esse seu delírio no palco e, assim, enfim, chegar a um resultado satisfatório. Porém, a pergunta permanece: aí, não será apenas um arremedo do primeiro sonho, aquele que o motivou a chegar até aqui, e então não ter nada mais a ver com ele?