“Os ‘Carecas’ voltaram a atacar”, escreveu o repórter Mario Nery, na Folha De São Paulo de 3 de maio de 1988, no dia seguinte de encerrada a primeira turnê do Toy Dolls pelo Brasil. “No show dos Toy Dolls no sábado à noite (dia 30 de abril), no Projeto SP, demonstraram o poder de coesão da força bruta e instituíram uma espécie de ‘ditadura’ da ‘slamdancing’ (literalmente, dança da favela), expulsando a plateia a socos e pontapés quem não pertencia à ‘turma'”.
O escritor, de forma bastante curiosa e didática, descreve os detalhes do pogo, pra então explicar o que se sucedeu: “O que se viu no Projeto SP foi uma corruptela do pogo, que provocou o abandono do espetáculo de pelo menos um terço das três mil pessoas que compraram ingresso pra assistir os Toy Dolls. Arremetendo individualmente ou em fileiras de três ou quatro pessoas, os carecas (versão brasileira dos ‘skinhead’ ingleses, que apareceram no ABC paulista, no início dos anos 80) chutaram pra fora boa parte do público da pista, que pagara 800 cruzados por ingresso. Só quem pôde investir mil e quinhentos cruzados (balcão) ou três mil cruzados (camarotes) teve o privilégio de assistir os dois espetáculos – o dos Toy Dolls no palco e o do êxodo forçado da plateia – até o fim”.
Esses valores atualizados pelo IPC-A do IBGE dão R$ 72,00 (pista), R$ 135,00 (balcão) e R$ 270,00 (camarotes). Pode parecer pouco pros valores de hoje – o Toy Dolls volta ao Brasil pela quarta vez em 2018 e o show em São Paulo custa R$ 120,00, a meia-promocional) – mas pagar pra não assistir foi uma frustração que se tornou mais lembrada do que o show em si.
Até hoje quando se fala desse show, sempre destaca-se o caso do “soco” que o vocalista e guitarrista Michael “Olga” Algar teria levado de um “skinhead”. Seria um caso típico de lenda impressa por ser mais forte do que o fato?
No dia seguinte a essa segunda apresentação especificamente (foram quatro shows: sexta-feira, 29 de abril; sábado, dia 30 de abril; além de domingo, 1º de maio; e segunda-feira, 2 de maio), a matéria da Folha De São Paulo chama o “soco” de “empurrão”: “o primeiro sinal de que a recepção aos Dolls seria tumultuosa foi o empurrão dado por um careca em Olga, quando o grupo estava na segunda música da noite. Todos os membros se retiraram imediatamente do palco e um ‘líder’ careca foi chamado ao palco pela organização do Projeto SP pra recomendar uma atitude pacífica aos companheiros. ‘Vamo ficá na moral, moçada’ foi o breve discurso do careca, que não convenceu os seguranças (da Fonseca’s Gangue) nem o público de que tudo correria bem daí por diante. Os robustos rapazes contratados pra manter a ordem no local (havia cerca de setenta espalhados pelo Projeto SP) formaram então uma barreira diante do palco pra impedir que outro impulso atrevido colocasse em risco a segurança dos Dolls, quando voltaram ao palco”.
O público que estava na pista e não era “skinhead” ou acabou indo embora sem ver o resto do show, com medo, ou ficou comprimido nas laterais do Projeto SP, enquanto a pista era tomada pelos brutamontes e sua dança à qual os demais não estavam acostumados.
Foi curiosa a reação de um dos proprietários do local, Arnaldo Waligora (junto com o já falecido irmão Marcelo): “o que aconteceu foi uma situação absolutamente metropolitana”, comparando a violência dos carecas e o temor do resto do público pagante à briga de torcidas de futebol: “a do Palmeiras e a do Corinthians não são bestas de se meterem uma com a outra, não é mesmo?”.
Eu não estava nesse show, mas amigos que foram disseram que o tal “empurrão” foi porrada mesmo. E era só sobre o que se falava. Na seção de cartas da Folha De São Paulo do dia 6 de maio, num desabafo assinado pela leitora Roberta Caldo, ela diz: “no dia 30/04, no show do Toy Dolls, quando Olga, Dean e Marti começaram a tocar teve início um dos momentos de maior brutalidade já vividos pelo Projeto SP. Um ‘careca’ pulou no palco, acertou um soco em Olga, pulando novamente pra pista, onde se misturou com dezenas de ‘carecas’. Manifestando-se contra a sociedade, batendo em quem aparecesse pela frente, os ‘skinheads’ acabaram com a noite de muita gente”.
O Toy Dolls, que dificilmente foi levado a sério pela crítica por ser uma banda “brincalhona” e não “muito punk”, durante essa primeira vinda ao Brasil acabou perambulando por vários programas de televisão, pra promover as apresentações e teve fácil aceitação nas rádios “rock”, por conta de sucessos (que duram até hoje) como “I’ve Got Asthma”, “Nellie The Elephant” e versão (ótima) de “Blue Suede Shoes”, as três que eles tocaram no saudoso “Boca Livre”, da TV Cultura, apresentado pelo Kid Vinil, que você vê abaixo na íntegra:
Quando a banda voltou ao Brasil em 1995, Marcel Plasse entrevistou Olga pra Folha De São Paulo e perguntou exatamente sobre o tal soco: “Na primeira vez que veio ao Brasil, você foi esmurrado por um ‘careca’ no palco. Não receia que isso se repita?”. Olga: “O ‘careca’ é o que eu lembro melhor sobre o Brasil”.
Marcus Nunes, do blogue 5 To Rock, entrevistou Olga em 2010 e fez o mesmo questionamento: “Na primeira passagem do grupo pelo Brasil, você tomou um soco no rosto de um fã em pleno palco, no meio do show. Como você se recorda desse episódio hoje?”. Olga: “Com dor, é claro. Foi um ótimo show, mas me custou um dente. Espero que não aconteça de novo”.
Não há imagem disponível da agressão, mas tem um vídeo (de quarenta minutos!) compilando o esforço do Toy Dolls em promover suas apresentações, passando por programas de televisão, com entrevistas bizarras e apresentação ao vivo (incluindo essa do “Boca Livre”), que dão uma ideia de como a imprensa cultural-jovem engatinhava na época e de como a banda se divertia com isso (inclusive uma entrevista após o show do dia 30 e nem se toca no assunto):
O Toy Dolls chegou ao Brasil já com quatro discos na carreira. O mais recente era “Bare Faced Cheek”, de 1987. A banda nunca encerrou as atividades e seguiu lançando discos até hoje, sempre como Olga na dianteira. O trabalho mais recente é “Olgacoustic”, de 2015, revisando suas canções, num formato acústico – antes dele, teve “The Album After The Last One”, de 2012, só de inéditas.
Já são quatro passagens pelo Brasil e mais de dez álbuns na discografia. Mas ainda é um soco que serve de aposto ao Toy Dolls.
eu vi em 1988 e por todos os skins da epoca me redimi subi no palco no carioca clube e reverenciei o olga!