AS MIL GUITARRAS DE GLENN BRANCA

“Depois de quase um século sendo ritualmente esmagada, incendiada e empunhada como um falo, a guitarra elétrica perdeu um pouco de seu sutil mistério. As notas aparentemente foram todas tocadas. No entanto, em uma certa noite durante o ensino médio, alguns amigos apaixonados por Thurston Moore e prog rock me apresentaram – a mim, uma criança criada com heróis de guitarra de todas as variedades – às sinfonias de guitarra de Glenn Branca, e o mistério foi vigorosamente restaurado.

“Em algum lugar entre o barulho feroz do Wolf Eyes e compositores texturais como (György) Ligeti está Glenn Branca. Suas sinfonias de guitarra são algumas das expressões mais evocativas do caos organizado em qualquer forma de arte e, na maioria dos casos, não soam como guitarras. Como parte da no wave de Nova Iorque, ele redefiniu o escopo do instrumento pra todos os roqueiros de noise dos anos 90 (o Sonic Youth, por exemplo, nasceu dos lombos experimentais de Branca).

“Então, quando o Experience Music Project postou uma chamada conclamando músicos pra tocar no ‘Hallucination City: Symphony 13 For 100 Guitars’ em Seattle, ofereci meus serviços como guitarrista. A concertista e esposa de Branca Regina Bloor me enviou a partitura de ‘Hallucination City’, um monstro de setenta minutos que estreou em 2001 no World Trade Center. Bloor também enviou uma lista abrangente de notas descrevendo como eu estaria modificando a maneira como eu toco e executo a guitarra e leio a notação. Pra que sua música funcione, Branca quer que os artistas desaprendam seus vícios, seus rifes, seus acordes de bar a la Black Sabbath e reaprendam o mistério das cordas, além da madeira e da eletricidade.

“O primeiro ensaio foi na EMP Sky Church, acusticamente bela; o segundo, no sombrio refeitório do Seattle Center Exhibition Hall. Organizada como um coral, a orquestra ficava de acordo com as seções: alto, tenor, barítono e baixo. O cara à minha esquerda me disse que ele tocou em seis outras apresentações da ‘Hallucination City’, incluindo as da Bélgica, Londres e Roma. Então, ele apontou cinco outros Brancanistas experientes que tinham vindo todos de lugares distantes. O alto à minha direita dizia: ‘acabei de ler sobre isso no jornal e queria tocar com uma centena de guitarristas’.

“Descobriu-se que a contagem era mais de 47 – ainda um número impressionante de guitarristas dispostos a passar dez horas por dia, durante três dias, tocando uma peça de música de vanguarda em uma festa de US$ 175 a US$ 275 por ingressos do Seattle Art Museum e sem receber nada. A experiência ofereceu outras recompensas.

“O que acontece quando uma peça de Branca realmente funciona é um pouco como a hipnose. Durante uma discussão informal na hora do almoço, ele falou sobre ouvir o som de um tom de voz lentamente ao longo de uma hora e como, se você ouvir alto o suficiente, você suportará ‘alucinações como nunca’. Indiretamente, acho que ele estava nos inspirando pra sua própria música. Outra vez, ele entrou na sala e disse ao (maravilhosamente fantástico) maestro John Myers: ‘eu não sei o que vocês estão fazendo aqui, mas estou ouvindo vozes nesta música’.

“Este era o tipo de elogio que ele constantemente nos dava enquanto entrava e saía da sala, com a barba por fazer, com a mochila e cabelos grisalhos, tempo suficiente pra ser chamado de ‘selvagem’. Ele deve saber que parte da razão pela qual os artistas aparecem é se deleitar com seu jeito, e a cada poucas horas, apenas pra nos satisfazer, ele deixaria escapar algo como: ‘o nome desse movimento é ‘Vengeance’, e enquanto vocês estão tocando, quero que todos pensem em como vocês vão se sentir na segunda terça-feira de novembro próximo’. Ou: ‘você fodeu tudo!’. Ele não estava apenas sendo legal; no decorrer de dois dias, a nuvem amorfa de som que pairou no primeiro ensaio foi de alguma forma esculpida em algo que, mesmo na sobriedade de paredes brancas do Exhibition Hall, era como um musical.

“O dia do show, no Olympic Sculpture Park, foi a primeira vez em que Branca mostrou seus dentes e sua voz – não pros artistas, mas pra a equipe: ‘que porra está acontecendo aqui? Onde diabos o maestro vai ficar? Aqui? Nisso? Deve ser metade desse tamanho! Qualé!’.

“No momento em que o show começou, as ansiedades foram reprimidas. Todos saquearam o open bar e as comodidades que pareciam caríssimas na festa de septuagésimo-quinto aniversário do Seattle Art Museum. Alguém esculpiu uma escultura de gelo de uma guitarra, uma guitarra incrustada de diamantes foi leiloada e bolos de casamento controlados remotamente passaram pelo parque. Tudo isso contrastava totalmente com a performance, porque, pra ser honesto, a casta de pessoa que toca / ouve Branca provavelmente não é do tipo que ganha algumas centenas de dólares em uma festa de gala.

“Mas os obstinados estavam lá – amontoados na rua, agarrados ao lado de fora da cerca – e, quando a peça começou, os aplausos mais agitados vieram daqueles bastidores. Os benfeitores do Seattle Art Museum, enquanto isso, se esconderam no parque num espaço só deles, ouvindo faixas Euro-dance-lite, esperando a hipnose em massa transcendental de Branca até que o ‘headliner’, uma banda cover de Neil Diamond, subisse ao palco. Isso foi ok pra gente. E posso dizer: é o tipo de resposta que apenas alimenta a inspiração de Branca – sua página no MySpace o representa com uma foto de alguns tipos conservadores cobrindo seus ouvidos e fazendo uma careta. Depois de todos esses anos, Branca ainda é a maior iconoclasta que a guitarra já viu, e é exatamente por isso que nós tocamos nossos corações por ele”.

Quem escreveu esses poucos parágrafos foi Ross Simonini, assinando um artigo especial pra The Stranger, revista virtual e impressa de Seattle, onde uma das apresentações da sinfonia de Glenn Branca, “Symphony No. 13 (Hallucination City) For 100 Guitars” aconteceu, naquele atribulado ano de 2008.

Simonini é um dos habilidosos guitarristas que foram moldados por Branca. Ele não chegou nem perto dos holofotes da história como conseguiram os iluminados do Sonic Youth, que tiveram o privilégio de serem lançados pelo selo Neutral Records, bem como o Swans. Entretanto, Simonini, como qualquer outro guitarrista que abriu a mente pras transcendentais notas de Branca, iluminado ou não, pode ser destacado como um guitarrista diferente, fora do padrão.

Porque foi assim que Branca e suas esquisitices ficaram conhecidos. Ele não se contentava com notas e arranjos e sequências padrões. A “Symphony No. 13 (Hallucination City) For 100 Guitars” foi só um dos exemplo – um dos mais ousados, por certo, mas só mais um exemplo. Quando lançou os excepcionais “Lesson No. 1” (1980) e “The Ascension” (1981), Glenn Branca já estava estraçalhando a obviedade com notas expressivas.

A obra só foi ser lançada em disco de fato e direito em 2016 (pela Atavistic Records), quando o Tiny Mix Tapes a determinou como “uma insana peça musical” – ou que o Telegraph chamou de o som de “uma espaçonave decolando”. A obra que se ouve no disco foi gravada em 2008, na apresentação em Roma. Soa como a mais alucinante ousadia musical eletrificada possível. Mais do que isso: soa como se tivesse mil guitarras e não cem.

A guitarra tem o poder de amplificar seu alcance podendo soar como se adornada por fantasmas. Como se cada músico, a cada palhetada, se desmembrasse em outros dez pra serrar o ar com mais vigor. Evidentemente que não é qualquer guitarrista que tem essa capacidade. Como bem descreveu Simonini, Branca tinha.

Com a sinfonia, Branca queria ver se conseguia alcançar a sutileza e a complexidade de sua música orquestral a partir da guitarra elétrica. “Se a guitarra elétrica é tocada alto – que é a maneira que deve ser tocada, na minha opinião – é assim que ela vai soar. Quando você a ouve nesta escala, você sente o potencial de profundidade real e transparência”.

Longe de improvisar ou despirocar, os guitarristas de Glenn Branca se inclinam todos pra frente, lendo partituras na direção de um maestro. Barulho não é uma leitura válida. A perspectiva é outra: é esmagar a percepção preguiçosa das pessoas a partir da arte.

Branca renegava o mainstream. “Eu me sinto mais próximo de Bruckner e Mahler – até mesmo de Wagner. Compositores que na suas épocas tentaram constantemente aumentar o tamanho da orquestra pra que ela soasse mais alto. É o que eu estou fazendo. ‘Hallucination City’ é música sinfônica pra pessoas que cresceram ouvindo rock”.

Branca é artista pra pessoas que cresceram desconectadas com o que o mundo vende, passando ao largo das mesmas lojas e letreiros e pautas jornalísticas. É pra quem não quer moleza. É pra quem ainda reverencia o mistério da guitarra.

Glenn Branca morreu no dia 14 de maio de 2018, aos 69 anos (prestes a fazer 70 – ele é de 6 de agosto de 1948), de câncer na garganta. Ao fim, ele nos deixou suas milhares de guitarras.

A “Symphony No. 13 (Hallucination City) For 100 Guitars” lançada em disco:

1. March
2. Chant
3. Drive
4. Vengeance

Ouça na íntegra:

Foto que abre este arquivo: Kristy Sparow/Getty Images

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