Dias 24 e 25 de julho de 1965, cinquenta anos atrás, Bob Dylan enfrentou a intolerância no seu próprio país. Diante de um mar de mentes fechadas ao novo, no Newport Folk Festival, plugou sua guitarra e digladiou com a turba.
Raul Ramone, criador da única festa folk de São Paulo (a Que Se Folk, veja aqui), conta como tudo se desenrolou naqueles dois dias, com vídeos e depoimentos, e como a guitarra mais uma vez cumpriu o seu papel de bater de frente com a velhacaria. É pra isso que se prestam as guitarras. E é em situações como essa que se constroem os mitos.
Bob Dylan, entoando um dos seus maiores sucessos, construiu mais um pilar de sua importância nesse episódio: o dia em que a guitarra elétrica enfrentou uma turba de ignóbeis.
Texto: Raul Ramone
Talvez a história do rock’n’roll possa ser divida em dois capítulos. Primeiro: a importância dos artistas negros na origem e popularização do gênero na segunda metade dos anos 1950, quase sempre em conflito com a segregadora classe média branca estadunidense. Segundo: o lançamento do single “Like A Rolling Stone”.
No início dos anos 1960, antes da revolução musical de Bob Dylan, até então um cultuado artista folk que começava a dar os primeiros passos com a guitarra elétrica (“Bringing It All Back Home”, lançado em março do mesmo ano, era metade acústico e metade amplificado), o rock – criado como subgênero rebelde, fruto direto do rhythm & blues – estava na mão de grandes gravadoras e executivos que tinham como alvo o público pré-adolescente. O resultado disso foram grupos como Beatles e Beach Boys, que passavam longe da transgressão de malucos como Chuck Berry e Little Richard.
Com isso, os jovens estudantes redescobriram o blues e a música folk, que resgatavam antigos valores como a segregação racial nos Esteites e a Guerra do Vietnã.
Pulamos pra 24 de julho de 1965. Bob Dylan sobe ao palco do tradicional Newport Folk Festival e canta “All I Really Want To Do”. Uma cena bastante comum nos últimos dois anos. Naquela mesma tarde, Alan Lomax, um respeitado pesquisador e defensor da música folclórica, entra em conflito com o empresário de Bob, Albert Grossman, que não gostou das provocações de Alan sobre a performance da Paul Butterfield Blues Band no festival.
Alan, um purista da música, não gostara das guitarras eletrificadas da Paul Butterfield Blues Band num festival de folk, daí a encrenca, ou o estopim dela.
“Foi o choque entre a elite e o povo”, disse Sally Grossman, esposa de Albert.
“Dylan ficou puto: ‘ora, fodam-se se acham que podem botar a eletricidade pra fora daqui, eu mesmo vou plugar tudo'”, lembra Jonathan Taplin, um dos gerentes da turnê de Dylan.
Diante de tal episódio, Bob Dylan convocou o amigo Mike Bloomfield (integrante da banda de Paul Butterfield) pra reprisar no festival a performance do single “Like A Rolling Stone” (lançado quatro dias antes, com o próprio Bloomfield tocando guitarra).
No dia seguinte, 25 de julho, Bob e sua banda fizeram uma rápida passagem de som, não deixando claro quais temas seriam apresentados. O técnico de som, Peter Yarrow (do trio vocal Peter, Paul & Mary), teve dificuldades pra ajustar o som. O que aconteceu em seguida mudaria pra sempre os rumos da música pop.
“No momento em que a banda tocou os primeiros acordes de uma versão elétrica de ‘Maggie’s Farm’, a plateia entrou em estado de choque. O que aconteceu em seguida depende do lugar de onde se estava, mas eu ouvi uma incrível hostilidade verbal vinda de todas as direções à minha volta. Quando a banda terminou de tocar ‘Farm’, houve poucos aplausos, reservados, e um turbilhão de vaias”, recorda-se Robert Shelton, crítico musical, amigo de Bob Dylan e, à época, funcionário do festival.
Ele segue: “a apresentação não foi convincente nem mesmo pros fãs mais ardorosos do novo som de Dylan. Quando Dylan e a banda passaram a tocar ‘Like A Rolling Stone’, o público ficou ainda mais agitado: ‘toque música folk!’, ‘Vendido!’, ‘isso é um festival de folk!’, ‘Suma com essa banda!’. Quando Dylan começou a tocar ‘It Takes A Lot To Laugh, It Takes A Train To Cry’ (na época, conhecida como ‘Phantom Enginner’), os aplausos encolheram e o tumulto ficou ainda maior. Dylan desceu do palco com a banda seguido por um longo e desajustado silêncio”.
Assista às performances de “Maggie’s Farm” e “Like A Rolling Stone”:
“As pessoas da plateia que resmungavam e zombavam quando Bob saiu do palco estavam chateadas por motivos diferentes. Algumas sentiam-se simplesmente ofendidas por Bob ter se apresentado com um grupo plugado em um festival folk. Outros estavam chateados porque a qualidade do som era muito ruim. Outros se sentiram enganados quando Dylan – o grande astro da noite – saiu do palco depois de cantar apenas três músicas. Ele não informou ao público que sua banda não sabia tocar mais nada”, conta Howard Sounes, biógrafo de Dylan, com o livro “Down The Highway: The Life Of Bob Dylan”, de 2001.
“Peter Yarrow subiu ao palco para acalmar o público. ‘Ele canta mais uma se vocês chamarem ele de volta’, anunciou. ‘Vocês gostariam que ele cantasse outra?’, perguntou. Nos bastidores, Bob parecia aturdido com o que acontecera, e estava sentado na escada, olhando fixo para suas botas. ‘Bobby, dá pra cantar mais uma, por favor?’, pediu Yarrow do palco. Alguns instantes depois Bob se recompôs. Pendurou nos ombros um violão que pegou emprestado com Johnny Cash e subiu os degraus que levavam ao palco. Quando apareceu no palco e a plateia pôde ver o violão, aplaudiram cantando vitória. Bob perguntou se alguém na plateia tinha uma gaita trêmula. Choveram gaitas no palco. Bob encaixou a gaita no suporte e tocou ‘Mr. Tambourine Man’, e depois ‘It’s All Over Now, Baby Blue'”, diz Sounes.
Assista à performance de “Mr. Tambourine Man”, com Yarrow fazendo o pedido a Dylan:
Na sequência, o trecho do documentário “No Direction Home”, de Martin Scorsese, que se aprofunda na questão da guitarra elétrica no palco do Newport Folk Festival de 1965.
Pra finalizar, o áudio completo das performances de Bob Dylan e banda em Newport nos dias 24 e 25 de julho de 1965. Infelizmente, a popularidade do folk rock não durou tanto quanto se esperava. Dois anos depois, a psicodelia atropelaria as paradas de sucesso pra fritar muitos cérebros da cultura pop. Mas a importância de “Like A Rolling Stone” – e da guitarra – continua inegável.
obrigado por nos ajudar…sucesso.