“É como se fosse o (meu) último disco, dei tudo de mim aí”, disse Cadu Tenório.
“Monument For Nothing”, o trabalho em questão, lançado neste dia 8 de junho de 2020, pelos braços da sempre atenta QTV, é o disco diante de uma incerteza. De um mundo de incertezas, de um mundo sem certezas ou perspectivas.
Mas não é sobre isso. Não é pessimista. Não é derrotista.
“Eu me esforcei obsessivamente pra fazer o máximo possível, em todos os sentidos, esticar as possibilidades e barreiras da miríade de gêneros com que flertei ao longo de todos esses anos, buscando ainda assim a maior coesão possível e, além disso, em termos técnicos, gravação, mixagem, se realmente for o último disco que tive oportunidade de lançar, que seja o que fique na memória por esses méritos”, empolgou-se.
“Não é marketing safado quando digo que é o trabalho da minha vida”, diz, rindo, o cidadão que lançou nos últimos anos duas obras potentes como os duplos “Rimming Compilation” (2016, conheça aqui) e “Corrupted Data” (2018/2019, conheça aqui o primeiro volume e aqui o segundo), e tem em seu currículo o excepcional “Anganga” (aqui).
É que Cadu é tipo um artista “em explosão”, ansioso. As ideias devem fluir com tal vigor que é preciso jogá-las à realidade, não importa qual seja, pra entender ele mesmo o que elas significam ou representam ou, ainda, como florescem na cabeça dos outros. Não deve ser fácil ser ele.
Mas, creio, muita gente tem esse problema. Só poucos sabem dar à luz suas criações. Não é isso que diferencia Cadu do resto da humanidade – ou, vai, do resto dos artistas. É a capacidade de dar forma às ideias, com começo-meio-e-fim, fio condutor, associação de conceitos, bagagem cultural e todos os eteceteras que você possa colocar nas mãos de alguém criativo.
Se no começo do ano, já em plena pandemia, ele lançou o incômodo “Room Memoirs”, disco que começou a ser feito lá em outubro de 2019, mas pareceu em uma noite de solidão em quarentena (leia mais aqui e ouça), com o seu “Monument For Nothing” ele soa mesmo como se estivesse reagindo ao momento que vivemos. Sem perspectivas, sem certezas, esse pode vir a ser o seu último disco.
“Eu venho trabalhando nele desde o ano passado, pra ser o disco de 2020; tenho uma coisa com esses números fortes, 2020 era pra ter algo especial, na minha cabeça. O ano começou, o trabalho bastante avançado e veio a pandemia, logo no inicio acabou saindo o ‘Room Memoirs’, que é um disco que tava pronto desde outubro do ano passado e, com ele, a vontade de apresentar o ‘Monument For Nothing” ainda esse ano acabou crescendo. O medo foi tomando conta, inicialmente, tendo em vista que lançar um trabalho gigante talvez não fizesse muito sentido, eu meio que desisti, fiquei um pouco deprimido, mas depois de alguns acontecimentos ao redor resolvi que o disco tinha que sair, de qualquer forma, e veio essa sensação, de que tá mais claro que nunca que o dia de amanhã é um incógnita (ri) e que eu precisava fazer tudo que eu queria nesse trabalho, porque seria possível que fosse o último. Talvez todos os discos carreguem esse peso, o dia de amanhã sempre será uma incógnita (ri). Mas acho que você entende estando vivendo o que estamos vivendo, né?”, disse.
Entender não é o problema. Viver automaticamente é o que a maioria das pessoas faz, então, mesmo entendendo, as pessoas vão seguindo a vida, robóticas. Basta liberar as portas dos shoppings e lá estarão elas, como se nada estivesse acontecendo. A incógnita deve estar na cabeça de todas as pessoas, que realmente não sabem o que vai acontecer amanhã. Não há planos. Não se faz planos. Fazer planos talvez seja coisa pra uma maioria abastada que, quem sabe, pode um dia realizá-los.
A grande massa entende que vivemos um momento tão incerto quanto no mais normal dos dias.
Mas muito poucos de nós pega essa angústia, esse temor e junta com “Blade Runner”, Vangelis, John Carpenter, John Coltrane, Makoto Aida (“acho que foi minha maior influência pro disco”) e sei lá mais que tonelada de referências pra realizar algo e aquietar o coração.
Apesar de tudo – do momento e das incertezas e da depressão – o disco não é pra ser visto como pessimista. Tanto assim, que Cadu juntou um time de artistas que admira na metade final do trabalho pra mostrar que não há solidão, há aproximação.
As primeiras faixas, de “Garden” a “@tekeli_li” (mais referências, agora a H. P. Lovecraft e Edgar Allan Poe) lembram, de imediato, a trilha sonora de algum filme futurista, ficção científica, o que quiser chamar.
O caos chega com a participação dupla de Juçara Marçal, na faixa-título. Mas dura pouco. na sequência, tem Juçara colocando a gente pra dormir em “Breeze ASMR”, uma experiência sensorial que realmente traz uma resposta agradável.
A dupla Carla Boregas & Maurício Takara, que lançou “Linha D’Água”, um dos grandes discos de 2020 (ouça aqui), aparece em “Yog-Sothoth Is The Gate” (de novo, Howard Phillips Lovecraft), dessa vez, uma trilha de suspense.
Sara Não Tem Nome, Rogério Skylab e Vitor Brauer estão no que se pode chamar de “trecho-canção” do disco: letras, dança, assimilação. Provavelmente, a obra mais “canção-pop” da trajetória de Cadu seja “Oito”, ainda com o Sobre A Máquina (confere aqui).
Enquanto isso, é provável, o ouvinte já tenha até esquecido o que “estamos vivendo”. A fantasia serve justamente pra isso. A arte também serve pra isso – nos levar pra outra realidade e questionar a atual, blábláblá.
“Monument For Nothing” não é o que Cadu espera que o disco seja – o trabalho da sua vida. Porque, a despeito do que compreende o próprio criador, e elogio dos elogios, sua obra ganhou tal uniformidade de qualidade que fica difícil estratificar como ele mesmo o faz.
O belo disco que ele acaba de entregar emociona, aconchega, até. Acalenta, tem em mim o mesmo peso até do “Room Memoirs”, mas é que talvez seja o momento que estamos vivendo, que nos deixa mais emotivos, deprimidos, ansiosos, desesperançosos – “nos deixa” vale pra aqueles que desligaram o modo robótico de viver.
A graça da vida é que, então, do nada, você dá de cara com um disco desses e as coisas voltam a fazer sentido e nem é preciso esperar o amanhã.
Cadu elaborou, executou, produziu e gravou a obra, como de praxe.
Com exceção das vozes e instrumentos adicionais, que foram gravados nos homestudios dos convidados, até por força da pandemia, todo o resto é de Tenório.
A mixagem é de Cadu Tenório e do sempre presente e essencial Emygdio Costa, que também assina a masterização.
01. Hi…
02. Garden
03. No Longer Human
04. Shinobu
05. Saffron Witch
06. Hazel Priestess
07. R’lyeh.exe
08. @tekeli_li
09. Monument For Nothing (com Juçara Marçal)
10. Breeze ASMR (com Juçara Marçal)
11. Yog-Sothoth Is The Gate (com Carla Boregas & Maurício Takara)
12. Nublado (com Sara Não Tem Nome)
13. Conchas (com Sara Não Tem Nome & Emygdio)
14. Astral Clocktower (com Lucindo)
15. Entreportas (com Rogério Skylab)
16. Mãos (com Vitor Brauer)
17. Gatos De Ulthar Na Rua Dos Quatro Ventos (com Emygdio)
18. Fim