Em 23 de junho de 2016, o Reino Unido votou a favor de deixar a União Europeia. O referendo foi apertado, com 52% dos votos a favor do chamado Brexit. Uma decisão histórica como essa não chega ao mundo impunemente e a história cobra logo sua fatura. Não deu seis meses completos, e os consumidores de artes e cultura já foram impactados. Em 17 de janeiro de 2017, a Apple mandou avisar que o preço de seus produtos ia subir em torno de 25%, pra compensar as perdas da libra diante do dólar, perdas causadas justamente pela incerteza vindas da decisão das urnas.
Assim, a Grã-Bretanha se equiparou a países como a Turquia, cuja depreciação da lira local fez a Apple reajustar os preços, e a Índia, que teve os preços majorados graças aos impostos que foram aumentados por lá. A política de preços da Apple se baseia no dólar e a moeda local flutuar com muita agressividade ou as condições econômicas mudarem faz com que a empresa tenha que alterar seus valores.
No caso da libra, que sofreu uma queda de quase 19% diante do dólar, resultou num aumento no preço dos apps, por exemplo, que saltaram de £ 0,79 pra £ 0,99. Mas não só: computadores, tablets, celulares, músicas e vídeos na iTunes Store e livros na iBooks Stores sofreram aumentos.
Mais pode vir por aí. A inflação anual registrada em novembro de 2016 foi de 1,2%, com os preços de combustíveis e alimentos puxando a fila, e indo bater em 1,6% em dezembro (de dezembro a dezembro), num movimento que os jornais chamam de “preventivo”, já que as bases do Brexit ainda não está lá muito claras.
As consequências econômicas pro mundo da música por conta do Brexit obviamente não param por aí. É prematuro ainda tentar prever o que vai acontecer com o comércio. Não se sabe quais serão os acordos que o Reino Unido fará com a União Européia ou com os países de forma avulsa. Há uma esperança que o Reino Unido faça como a Noruega, que não é membro da União Europeia, mas usufrui de um espaço no EEA (sigla em inglês pra Espaço Econômico Europeu), uma área de livre-comércio criada em 1994, antes mesmo da implantação do euro e da efetivação da UE. Mas, diz-se, tal posição duraria uns três anos pra ser articulada e custaria uma boa grana, com o tesouro britânico tendo que pagar pra usufruir do privilégio ao acesso a esses mercados em termos favoráveis. Porém, talvez nem com dinheiro isso seria possível, já que o EEA prevê que os países membros devem oferecer a livre circulação não só de produtos e capitais, mas de pessoas dentro da área, e sabemos que é justamente esse o impulso que levou ao Brexit.
Assim, com tais barreiras, o mundo da música inglesa poderia sofrer um impacto e tanto. O Reino Unido sempre foi o segundo ou o primeiro mercado produtor de música pra exportação (rivalizando, claro, com os Esteites, ambos no privilégio da língua-mãe, o inglês); um dos quatro principais mercados em vendas de produtos de música gravada; e um dos maiores mercados em gasto per capita com música. Em 2016, obras britânicas representaram mais de 17% das vendas de discos na Alemanha, França, Itália, Espanha, Suécia e Holanda. Ou seja, quase um a cada cinco discos vendidos nesses lugares foram criados, produzidos e tiveram os direitos de criação, venda e distribuição gerados no Reino Unido. É uma indústria de grande vulto. Um terço de toda a venda no Reino Unido foi de produtos domésticos.
As vendas físicas, que geram mais ganhos aos artistas do que os ganhos por streaming e venda online, são mais populares na Europa, de modo que o Brexit pode afetar diretamente esses ganhos, já que os discos ingleses se tornariam produtos importados nesses países, gerando outros impostos e preços maiores – as vendas físicas podem despencar.
Há ainda um impacto direto na produção física de discos. Normalmente os selos britânicos usam fábricas de vinil fora do Reino, na maioria das vezes na Alemanha e na República Checa. Os vinis se tornariam produtos importados, o que significa diferentes e novos impostos. Pequenos selos, principalmente, seriam afetados.
Sean Price, capo da recém-finada Fortuna POP!, disse em entrevista à revista Clash, que desistir era “a coisa certa a fazer, desde o Brexit. Há um bocado de pequenos selos prensando vinis na República Checa, e com a libra despencando tudo só vai ficar mais caro. Com mais taxas chegando por aí, isso vai absolutamente matar os pequenos selos”.
Além disso, há a questão do copyright. A Europa está atualmente revendo a legislação, principalmente no âmbito digital, com a unificação de leis, criando um Mercado Único Digital. Hoje, no bloco, há vinte e oito países com leis distintas sobre o tema e a pirataria é um foco – a promessa é que a Europa se torne com isso “líder mundial em economia digital”.
O Brexit pode reduzir o poder de negociação dos artistas independentes britânicos tanto nessa reformulação das leis, quanto no âmbito interno, já que o Reino teria que começar sua revisão das leis do zero. Vale lembrar que selos e artistas pequenos não têm poder de negociação a não ser unidos e representados nos parlamentos como uma força única. E se a estratégia do Mercado Único Digital não é apoiada ativamente pelo governo britânico há uma possibilidade real de que uma medida diferente de direitos autorais, menos punitiva, substitua a iniciativa, com os artistas locais sofrendo ainda mais.
O caso é que deixar os artistas britânicos à deriva não é uma opção. O ex-secretário de cultura do Reino Unido, um parlamentar chamado John Whittingdale, declarou que a intenção do novo governo é apoiar a classe criativa, incluindo os músicos, o que a atual secretária, Karen Bradley, referenda. Não podia ser diferente. Essa indústria, a despeito de toda “crise” da pirataria e dos reportes de diminuição de consumo e toda essa choradeira, ainda responde por 16% de tudo o que o Reino Unido arrecada. Entretanto, discurso nunca garantiu nada, ainda mais quando vem da classe política. O que vem por aí, mais uma vez, ainda é uma incógnita.
Outro grave problema que bate à porta é o mecenato e o investimento em aparelhos culturais. A União Europeia doa mais de um bilhão de libras pra indústrias criativas e o Reino Unido, antes do Brexit, obviamente também era beneficiado. Embora a indústria musical da Ilha não dependa especificamente desse dinheiro, ela é impactada de uma maneira indireta. Locais como o The Village Underground, um armazém na revitalizada região leste de Londres, com capacidade pra mil pessoas, palco de shows e incubadora cultural, recebe grana de dois programas da União Europeia. A LiveEurope é um desses programas, uma iniciativa que apoia lugares pra shows de artistas em ascensão. Outra é a Creative Lenses, que apoia modelos alternativos de gestão cultural. Há muitos outros.
O Brexit tinha como principal argumento de convencimento brecar a onda migratória que assolou a Europa por conta da crise humanitária (essa, sim, uma crise de verdade) causada pelo avanço do Estado Islâmico na Síria e arredores. Os ingleses amedrontados quiseram fechar as fronteiras. Mas fechar as fronteiras dificulta que as pessoas entrem e dificulta que as pessoas saiam. E isso inclui artistas que precisam excursionar.
A barreira é preocupante porque uma das melhores fontes de renda de um artista é justamente a estrada e o que uma turnê impulsiona – de vendas de camisas e discos numa minúscula e improvisada banquinha à divulgação que uma apresentação ao vivo proporciona. São raros os países que tratam músicos e artistas em turnê de uma maneira especial, facilitando a entrada. Ao contrário, a emissão de vistos e seu entorno burocrático é uma indústria frutífera, que emprega muita gente. Com o Brexit, os artistas britânicos vão voltar a enfrentar tal procedimento pra países que antes tinham livre acesso.
Como não se sabe ainda exatamente quais serão os acordos diplomáticos pós-Brexit, fica a dúvida do quanto isso vai custar em tempo e dinheiro pra artistas caírem na estrada pela Europa.
O continente tem fronteiras muito curtas, de modo quem em poucas horas você pode atravessar alguns países e isso talvez queira dizer, dependendo dos acordos país a país pós-Brexit, que o artista pode precisar de vários vistos numa só viagem de final de semana, o que fatalmente vai impactar no valor dos cachês e, daí, no preço dos ingressos. Há um cenário bem pessimista que faria com que isso resultasse na diminuição ou até mesmo extinção de turnês de bandas menores pelo continente.
Além dos vistos, há os equipamentos. Artistas de porte médio pra cima possuem estruturas mais complexas de montagem de palco e viajar com esses equipamentos pode gerar mais burocracia e custos, já que normalmente cada peça está acima do limite de importação livre pra passar pelas fronteiras e elas deveriam ser declaradas. Mais impostos, taxas? O mesmo vale pra bandas e artistas europeus que quiserem tocar no Reino Unido.
Os festivais sofreriam? É provável que sim, ao menos nos seus custos de produção, caso queiram manter a diversidade, e esses custos seriam repassados aos preços.
Nesse caso específico, talvez o Brexit crie involuntariamente uma “reserva de mercado” baseada em diminuição de custos. Bandas menores, impedidas de excursionar, teriam que voltar seus olhos apenas pro mercado interno. Os festivais, assim, poderiam fazer o mesmo e recrutá-las. A questão é a que preço, já que na grande selva que é o mercado, oferta e procura, necessidade e oportunidade, determinam o valor de um produto. Bandas menores podem acabar valendo menos e aceitando “qualquer coisa” pra tocar – os artistas brasileiros sabem muito bem o que é isso e não é um quadro legal.
A libra mais barata – e era a moeda mais cara do mundo – pode causar um acréscimo no turismo local, e o mundo da música é parte importante nessa teia de atração turística, seja com festivais, seja com shows avulsos. Mesmo assim, o aumento do turismo pela desvalorização da libra não compensaria perdas em outras frentes.
Recente pesquisa mostra que o turismo musical gerou £ 3,7 bilhões em gastos no Reino Unido, sendo pouco menos de dez milhões e meio de turistas representando 38% de toda a indústria da música ao vivo em 2016. Não é algo a se desprezar e talvez seja a única boa notícia nisso tudo.
O que se conclui? Alex Stewart e Ryan Stotland, no The Music Business Journal, escrevem: “considerando que o impacto sobre o comércio e os direitos autorais com o Brexit é incerto e potencialmente nocivo pra indústria da música, pode haver uma luz no fim do túnel com a desvalorização da libra. Analistas parecem pessimistas sobre as perspectivas a longo prazo pra economia doméstica, o que afetaria toda a indústria musical. Se a música ao vivo continua a ser a principal fonte de renda pra maioria dos músicos, novas restrições de viagem e despesas mais altas podem prejudicar os artistas. Pode haver alguma compensação com receitas do turismo musical na Ilha, mas o público hoje é mais global do que nunca e os artistas se promovem mesmo é no exterior”.
Em suma, o Brexit é uma incógnita. Ninguém sabe exatamente o que vem daí. O cenário é pessimista, ainda mais com o partido conservador no comando. Stewart e Stotland encerram, então, dizendo que “a primeira regra pra se jogar um novo jogo é, claro, entendendo-o. Mas no caso do Brexit isso não vai acontecer tão cedo”.