CONSTANTINA: DEZ ANOS DE “HAVENO”

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Em 2011, o Brasil ainda era um país habitável. Talvez o Planeta Terra ainda o seja dez anos depois, mas isso exclui certas paragens, com malucos saindo dos esgotos. Naquele Brasil, havia esperança. Dez anos atrás, havia a certeza de que muita coisa errada podia ser corrigida pra que tudo pudesse melhorar não pra uns poucos, mas pra quem quisesse agarrar a oportunidades e andar com a vida.

Hoje… bem, hoje, o Brasil não é um lugar seguro. É tudo tensão, é tudo esticar de cordas, é tudo dedo em riste, é tudo xingamento, é tudo distorção da realidade.

Inacreditavelmente, é nesse Brasil deplorável de hoje que uma obra como “Haveno”, quarto disco do Constantina (ô, nome delicioso de se dizer!), se faz mais significativa.

Há dez anos, quando lançado, o disco acabou entrando na nossa lista de melhores do ano, por méritos próprios. A política nacional, os atritos sociais pouco tinham a ver com o cortejo. E isso é curioso. Porque quando dizemos que uma obra “envelheceu” bem é porque ela precisa enfrentar as mudanças políticas, sociais e pessoais, ambientes nos quais o ouvinte está inserido. E o ouvinte, oras, cresce, amadurece, tem novas experiências, tudo pode mudar.

E ainda tivemos uma pandemia no meio disso tudo. Só no Brasil, até o momento e oficialmente (ah, a subnotificação…), mais de quinhentos e oitenta mil compatriotas morreram, deixando esse enorme contingente de famílias sofrendo, com perdas irreparáveis. Quantas delas ouviram “Haveno” ou, pergunta mais pé-no-chão, quantos desses tinham a música como um dos seus portos-seguros pro caos diário?

A música não tem o poder de curar feridas dessa profundidade. Pode ajudar, mas certamente remédios mais indicados. “Haveno”, ouso dizer, carrega uma “tranquilidade” perfeita pra amenizar dores, paixões feridas, saudades, sonhos, frustrações.

O termo “haveno” quer dizer “porto” ou “porta” em esperanto. Pode significar “entrada”. Ou “saída”. Um acolhimento ou uma liberdade. Em qualquer interpretação – e você é amplamente livre pra, ao se debruçar sobre a obra, ter a sua própria – o disco se mostra um bom companheiro.

Com o passar do tempo, esse amigo cresceu, amadureceu. Como eu. Como você. Há discos que ficam lá atrás na memória e que só vão ser resgatados como memorabilia de uma época mais leve e inocente em nossas vidas (e que certamente não voltam mais). Não, a nova audição de “Haveno” mostra um disco tão leve e tão robusto quanto dez anos atrás. Mérito da obra, porque nós, ouvintes, não temos a menor condição de reivindicar isso, afinal, nosso tempo já passou.

Em 2021, neste 1º de setembro, em comemoração, a banda lança uma edição especial de “Haveno”, com mais sete versões ao vivo das faixas e outras três acústicas – onde mora a maior curiosidade da edição. Dez faixas a mais pros dez anos do disco.

Aqui no Floga-se, além disso, Daniel Nunes, um dos integrantes do grupo, junto com Andre Veloso, Bruno Nunes, Gustavo Gazzola, Lucas Morais, Thiago Vieira e Tulio Castanheira, nos presenteia com uma visão bastante particular da obra, do nascimento até esse momento comemorativo.

“Se bem me lembro as primeiras sonoridades de ‘Haveno’ nasceram bem antes do álbum sair”, ele nos contou. “Se não estiver muito errado acho que em 2009 nasceu a melodia que integra a parte final de ‘Bagagem Extra’, que anos depois viraria uma espécie de hino pros shows. Todas as pessoas cantando ‘lá lá lá lá láaaaaaa’. Naquela época, meu irmão Leo ainda estava no grupo, saindo em algum momento desse ano”.

“Mas foi no fim de 2009 pra 2010 que nos tornamos um septeto, amplificando uma série de possibilidades, sonoridades, ideias, ares e perspectivas não vislumbradas por nós (André, Bruno, Daniel e Léo, que saiu logo na sequência da entrada dos quatro) que vínhamos desde 2005”, seguiu. “Com a entrada de Gustavo, Lucas, Thiago e Tulio tivemos várias cabeças que trouxeram suas experiências, vivências e referências renovando os ares e os vícios que tínhamos como coletivo”.

A entrada dos novos integrantes de uma encorpada nas influências do Constantina: “lembro que na época Tulio escutava muito Hermeto Pascoal. De alguma maneira isso foi impresso no álbum. Esse novo ar foi muito importante, pois já vínhamos percorrendo um caminho sinuoso”.

Sem shows por mais de um ano e meio, por conta da pandemia, as pessoas um tanto tentando sobreviver e não ficar loucas, um tanto que esqueceram como era em um passado próximo. As bandas nacionais tinham que disputar espaço com as gringas, que passaram a vir em peso pro Brasil, aproveitando um dólar mais próximo do real e uma época de pleno emprego – sim, isso existiu e em 2011 o quadro era perto disso.

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A banda, em 2014

“Lembro que um grupo como Constantina entre os anos 2005 e 2010 não era tão comum. Conseguir romper as fronteiras em casas de shows, festivais se fazia algo necessário e urgente, mas um pouco cansativo. E acho que foi nessa energia que nasceu ‘Haveno’. Ao lembrar hoje, sinto que queríamos fazer aquele coletivo acontecer mais do que qualquer outra coisa na vida. Acredito que isto tenha sido a nossa potência, mas também uma das nossas fragilidades, pois foi logo após o lançamento do álbum que tivemos a nossa maior ruptura, Lucas, Thiago e Tulio saíram assim voltamos da segunda tour dos EUA”, escreveu Daniel, com um tanto de frustração, afinal não é fácil batalhar, batalhar, batalhar e dar alguns passos atrás.

“Não quero julgar. Foi como foi. Acho que em alguns momentos, nesse caminho, podemos esquecer de sentidos que são fundamentais pra existência de um grupo. Hoje, após dez anos, entendo que algumas decisões poderiam ter nos conduzido a outros ambientes, mas o grupo foi o que tínhamos de maturidade naquele instante. O que acreditávamos. E isso sempre nos guiou; nossa sinceridade com o que escolhemos fazer o Constantina. Todas as intempéries e calmarias foram navegadas da maneira mais sincera!”, explicou.

Mas, claro, nada é em vão e nada acontece sem consequências, boas ou ruins. Novos caminhos surgiram.

“A entrada de novas pessoas (referindo-se ainda a Gustavo, Lucas, Thiago e Tulio) fez com que o processo de composição tivesse de ser amadurecido. Nesse sentido, ensaiávamos três, quatro vezes por semana. Era uma agenda intensa pra descobrir os novos caminhos”, disse Daniel. “Vibrafone, trompete e percussões diversas começaram a dar o tom do que viria ser o álbum. Acho que ter esses elementos coloriu as melodias traçadas pelo Bruno nas cordas. Abriu espaços também pra que a eletrônica se arriscasse mais. Isso tudo fez com que os ensaios fossem permeados de improvisações e sonoridades que apontavam novos horizontes. Com o tempo, ‘Bagagem Extra’ solidificou-se em música. Mas se não estiver errado, ‘Azul Marinho’ veio antes”.

“Não me lembro ao certo quem nomeou o álbum”, ele continuou. “Se eu não estiver errado, Bruno trouxe a palavra ‘haveno’. Hoje, ao lembrar desse momento, tenho a memória que foi um instante mágico. As coisas ganharam sentidos. As músicas começaram a surgir; ‘Imobilidade Tônica’, ‘Monte Roraima’, ‘Benjamin Guimarães’ e ‘Pequenas Embarcações’ foram nascendo em inspirações e muito trabalho. Improvisávamos bastante; reuníamos partes do que gostávamos e buscávamos reproduzir, vasculhar saídas pra situações que ainda não pareciam estar resolvidas. Lembro quando surgiu a ruptura no meio de ‘Benjamin Guimarães’. A melodia que se mostra sozinha e logo na sequência ganha corpo, instrumentação e fica grande. Acho que ter criado esse imaginário pro álbum nos deu uma direção muito importante, pois tínhamos várias ideias que eram guiadas por esse desejo de navegar. Durante os ensaios de ‘Haveno’, fizemos muitas músicas! Muitas!”, disse, com nítida empolgação. Daniel sabe que “Haveno” não é um disco qualquer.

O disco, como o nome indica, tem um norte. É uma saída, é uma entrada, como toda viagem, um misto de liberdade e descarrego.

“‘Haveno’ inspirou-se no universo náutico e suas intempéries, que passam de instantes calmarias às tempestades. Suas imagens sonoras traziam o desejo de tornar sonoro todas essas potências que percebíamos desse universo. Com isso, Bruno começou a elaborar o que viria ser a identidade gráfica-visual do álbum, trazendo toda a grandeza, força, cor e porque não, cheiro do mar”, contou.

E completou: “Em 2011, Ian Dolabella (Estática) me apresentou o livro ‘A Antibruma’, do Nils Skare. A beleza como Nils descreve o mistério do mar, foi o que criou o elo que faltava; som mais imagem mais palavra. Inserimos várias passagens do livro do Nils nos postais que estão junto a versão em CD. Tudo isso deu volume ao álbum!”.

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“‘Haveno’ nos rendeu uma série de chamadas pra listas de discos” – incluindo pra do Floga-se naquele já distante 2011. “E, claro, isso foi importante! Foram acontecimentos que validaram o caminho que estávamos traçando; de alguma maneira considero autêntico pra aquela época. Confesso também que foi importante realizarmos as duas tours os Estados Unidos, que aliás, foram experiências que guardo com muito carinho; há de recordar que àquela época nosso acesso a Internet era algo bem mais limitado. E isso trouxe uma série de dificuldades ao mesmo tempo que aprendemos muito como coletivo e amigos”.

Só que nada na trajetória do Constantina é um mar de rosas. Há tormentas. E novos começos, como o próprio Daniel já destacou – que podem ser desgastantes.

“Foi na sequência da segunda tour, em 2012, que tivemos de lidar com a ruptura e saída de três membros. Isso nos fragilizou bastante”, ressaltou. “Sair alguém é sempre recomeçar a história. É encontrar uma nova configuração do coletivo. Uma nova configuração dos instrumentos. Refazer não apenas arranjos, mas os afetos. Mas minha impressão é: pra quem está nisso há anos, todo recomeço pode ser cada mais desgastante. Pois a sensação é andar duas casas e na sequência voltar três”.

Na sequência, segundo Daniel, Alex retorna ao grupo. Ele havia saído em 2007 pra morar em Portugal. E a banda ganha outro reforço de peso: “Barulhista, amigo de anos, também ingressa ao coletivo. Ambos trouxeram o que nos faltava naquele momento. Mas foi exatamente nesse ponto que percebemos que o ciclo ‘Haveno’ já estava se encerrado pra dar início a algo novo”.

A partir da entrada de Alex e Barulhista, a banda começaou a experimentar novas músicas. O Constantina, veja, chegou a registrar no carnaval de 2013 um álbum que nunca foi a ser lançado. “E tenho pra mim que foi nesse carnaval de 2013 que ‘Haveno’ deixou de ser pra dar espaço a novas composições”, sublinhou.

Mas o disco foi, sem dúvidas, um período de aprendizados e experiências que ficaram incrustadas na vida de cada integrante: “durante o período ‘Haveno’ fizemos muitos shows. Tocávamos em diversos lugares e situações. Uma loucura. Em um final de semana tocávamos em um palco com as Meninas de Sinhá pra 5 mil pessoas e na semana seguinte estávamos em Santos, São Paulo, tocando em uma sala para cinquenta pessoas, tendo que dormir praticamente no chão. Isso nos deu muita experiência, ao mesmo tempo que nos mostrou situações que já não queríamos mais viver. Com todas as antíteses que vivemos esse período”.

“Hoje ao escrever estas linhas”, Daniel seguiu refletindo, “penso que toda essa intensidade que permeou todos os anos da ‘época ‘Haveno” que eu, particularmente, nunca mais escutei o álbum. Acho que depois de ter tocado tantas vezes aquelas músicas o meu desejo foi de apontar para frente”.

Assim, por incrível que pareça, a experiência que você leitor vai ter ao se reaproximar de “Haveno”, com suas faixas extras, é um tanto como a reaproximação do próprio Daniel. Talvez você se emocione. Envelhecer dez anos e não perder o brilho não é fácil. Espero que você tenha conseguido. Eu mesmo não sei se fracassei nesse quesito.

Estamos todos mais velhos e cascudos. Mas “Haveno” segue leve, nos convidando a navegar por mares que se antes navegados parecem novamente desafiadores e novos. Refrescantes? Incômodos? Turbulentos? Os mares estão aí pra serem justamente enfrentados, várias vezes se for o caso.

“Ao ser alertado pelo meu irmão Bruno este ano, 2021, sobre os dez anos de álbum, fiz esse regresso. Incrível! Me emocionei. Ri, chorei, revivi instantes que me pareceram eternos. E recordei da beleza de obra que compusemos durante aqueles anos. Um baita álbum que tenho imensa alegria de ter criado com o coletivo! Sinto que ‘Haveno’ envelheceu bem! É um álbum contemporâneo”, sem empolgou com sinceridade.

Pra ele, o disco, “por vezes, denuncia sua idade, por vezes trai nossa escuta, nos trazendo sonoridades que escuto hoje em vários discos”.

“Interessante revisitar e perceber que conseguimos reunir o rock com a música brasileira ‘torta’. Torta por não sermos instrumentistas de fazer musical, mas que, de alguma maneira, viveram essa música através do corpo. Nossos corpos, mãos e sentidos tentaram imprimir nossas relações afetivas com a música brasileira. ‘Haveno’ acabou sendo essa comunhão de pessoas, referências, tentativas, persistências e erros, mas que capturados de maneira sincera”, escreveu.

“Por fim quero dizer que o mais importante deste meu depoimento é saber que cada integrante terá uma percepção muito distinta. Tenho certeza que meu irmão Bruno terá outra leitura de várias coisas. Pra mim a parte mais fundamental deste exercício proposto pelo Floga-se foi relembrar e reimaginar as memórias, imagens e sons que guardo desse período; afetos que não acessava há tempos. Lembro de entrar na van nos Estados Unidos. Lembro de sermos multados. Lembro de gravar um vídeo no metrô dos Estados Unidos. Lembro de gravar uma música com a Terri Winston no estúdio Women’s Audio Mission. Lembro de Dona Valdete das Meninas de Sinhá como se fosse um tempo não tão distante. Lembro da noite em que Thiago, Lucas e Tulio saíram”, disse, numa indicação que as emoções vividas poderiam render muito mais do que um texto aqui no site.

“Mas o que mais lembro era: a música pulsando em nossas veias! Em nossos corações! O fim parecia ser tão distante… Talvez não tão distante quanto hoje. Mas isso é assunto pra um futuro que espero estar bem distante. Por hoje estamos vivos e devemos celebrar a vida! Celebrar e agradecer cada pessoa que fez e faz parte da nossa história! Agradeço de coração cada pessoa que fez dar sentido a essa história”, encerrou.

Estar vivo é uma vitória no Brasil de hoje. Que o Constantina mantenha constantemente celebrando suas milhas percorridas, içando velas pra novos ventos. Ventos de normalidade e esperança.

“Haveno” foi originalmente lançado em 1º de setembro de 2011. A nova edição, na mesma data, só que de 2021.

O disco original foi gravado no estúdio La Petite Chambre. As faixas ao vivo foram captadas no Festival Verão Arte Contemporânea, em fevereiro de 2012. As acústicas, no Museu Histórico Abílio Barreto, em março de 2013.

A mixagem e masterização é de Andre Veloso.

01. Imobilidade Tônica
02. Azul Marinho
03. Juan, El Marinero
04. Benjamim Guimarães
05. Bagagem Extra
06. Pequenas Embarcações
07. Monte Roraima
08. Untitled (Bonus Track)
09. Imobilidade Tônica (Ao Vivo)
10. Azul Marinho (Ao Vivo)
11. Juan, El Marinero (Ao Vivo)
12. Benjamim Guimarães (Ao Vivo)
13. Pequenas Embarcações (Ao Vivo)
14. Bagagem Extra (Ao Vivo)
15. Monte Roraima (Ao Vivo)
16. Benjamim Guimarães (Acústica)
17. Imobilidade Tônica (Acústica)
18. Juan, El Marinero (Acústica)

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