ELEMENTOS NARRATIVOS NA MÚSICA CONTEMPORÂNEA

I. Começo

Há um lugar em que se estabelece o “começo absoluto” e talvez seja este lugar que Jp Cardoso sinta saudades em toda referência a um local de origem afetiva que encontra-se ao ouvir “Submarine Dream”. Não um lugar em específico que ele tenha fisicamente frequentado ou uma aclimatação que ele tenha sentido, mas a sensação de que há um espaço vazio em que tudo o que ele é originou-se. Neste movimento de tentativa de retorno é revelada a existência do lugar. Se há um movimento, há uma origem.

Se não é possível chegar a determinada origem nostálgica, Tássia Reis em “Outra Esfera” credita a transcendência (que em “Submarine Dream” estava na evocação da saudade) a um rap pesado que invade o instante e implode bases fracas (embora estranhamente tradicionais, porque pouca tradição é originada de um sintoma forte). O sentido literal de suas palavras é combativo e surge significativamente desarmado; se os lindos instrumentais são o plano de fundo, o ataque principal está no verbo. Da palavra, o pensamento primordial pode mostrar alguma manifestação.

Falar é uma contradição e é o universo contraditório e excessivamente opressivo que Mc Carol mostra em “Bandida”. O que constitui tantos os beats influenciados pelo trap como, obviamente, a preferência pelo funk carioca – “Bandida” cria um fenômeno que só alguém tão corajosa como Mc Carol poderia liderar; as multirrepresentações violentas da realidade sem, jamais, abaixar a cabeça. Neste sentido, ela é muito parecida com Tássia Reis; ambas assumem um mundo brutalizado e sinalizam pra subversão individual que pode brotar de cada ato corajoso.

Os três projetos citados abordam algum tipo de classificação: a saudade em Cardoso e a coragem tanto de Carol quanto Tássia. Pra classificações não se estende limites rigorosos. No fluxo contemporâneo, as fronteiras musicais não significam muita coisa (ainda que não raro apresente limitações como elitismo etc.). Em “Drunker Daniel”, o The Hexx, com um foco completamente diferente, tem um diálogo sincero (e um pouco alcoolizado, talvez) como de Reis e Carol. São diálogos que apresentam uma narrativa talvez mais lúdica e socialmente menos impactante, mas que ainda sim revela certa preocupação contemporânea em contar histórias (todos os álbuns citados aqui são prioritariamente narrativos).

II. Elementos de Origem

Histórias que seguem em um horizonte não muito fácil de visualizar nas cinco músicas de “Sonho De Cachorro”, de Fábio De Carvalho. O eu-lírico do EP não consegue mais suportar divagações presas. Parece que além de narrar histórias, as divagações e suposições sobre os momentos vividos corroboram paralelamente em um panorama que alguém tão insignificante como uma pessoa (ou um cachorro) tenta abraçar todos os sintomas que caracterizam o mundo como tal (como uma possibilidade de ser experimentado). É como se Fábio tateasse no escuro (mesmo apresentando uma composição lírica de muitas cores, em sentido literal) a procura de um momento Gênesis da própria vida – como se todos os atos e pensamentos tivessem importância originária.

Diante do split “miazzo + god pussy – untitled” (ouça aqui), pode-se falar dos ruídos como supersintomas de alguma origem criativa. Ambos os artistas têm construído progressões subversivas estruturalmente e revelado na espécie de “antimúsica” que os caracteriza um elemento que também é anarquia de certa tradição e, em sua feroz agressividade, um importante constructo de suma importância no “pensar outra música”. Percebe-se este split como uma intromissão em campos estáticos pra mostrar que está (quase) tudo sendo criado por complexos culturais. O split é uma afirmação do movimento de destituição cultural.

Modos de tratar a música não faltam. O projeto “Rio Sem Nome”, de João Carvalho, surge como um ato contraditório em sua própria criação. É um disco esquizofrênico. A representação estética dos problemas do início da fase adulta camufla-se em cânticos contrários, melodias cortadas – há em todo o disco uma disfunção do que pode ser apresentado como ideias falsas ou convicções absolutas. Os próprios nomes das canções brotam como pequenas afirmações que são contestadas frequentemente no desenrolar delas. Deixar um legado, a falta de símbolos pra afirmar a própria existência (“Quando não sobrar os seus retratos”), o medo alienado de perder fisicamente provas de que existiu – “Rio Sem Nome” mira nos mais diversos símbolos (retratos, lua etc.) pra afirmar a melancólica temporalidade das coisas.

“Blanka”, do Poltergat (ouça aqui), surge com suas guitarras ofensivas como contestação. Há um elemento de destruição que não se manifesta plenamente e fica sempre em um reduto – afinal as músicas seguem certo tipo de criação (rifes, versos, refrão) e não poderia ser de outra maneira. Poltergat representa uma parceria entre banda e os selos Sinewave e Howlin’ Records e talvez, esteticamente, seja o elo perdido entre ambas. Guitarras sobre as melodias e uma intensidade que remete muito a vários elementos importantíssimos pra construção do que se convencionou chamar de rock alternativo (por mais vago que o termo soe).

Se vários dos lançamentos listados aqui carregavam uma dubiedade intrínseca em sua estética, talvez nenhuma dubiedade seja mais corrosiva e ofensiva que “Ideação Suicida”, do God Pussy. Esqueça qualquer simulacro de conservadorismo musical (e, portanto, político), Ideação Suicida surge como uma retaliação que se cria e repete e recria e se amplifica sonorizando uma das coisas mais ignoradas por toda humanidade: o problema do suicídio.

Ao contrário disso, Mongaguá Praia Clube, com “Lagoa”, propõe a ambientação de um circundar. É um estar-no-mundo sonorizado cuidadosamente que surge da instauração de perceber-se embutido na existência. É uma espécie de antitradição porque não propõe nenhuma base de “gênero musical” e parece muito mais intuição criativa do que qualquer aproximação apropriada de algum estilo. A música instala-se sem pretensões e é em seu curioso e paciente desenrolar que flagramos movimentos que nos remetem a tantos sentimentos. Esta interação funda no ouvinte uma fusão entre o que é constantemente escutado e suas próprias memórias. A delicada música do Mongaguá Praia Clube inscreve-se em nossas lembranças e sonoriza momentos passados. É muito doido.

III. Elementos-Chaves

A noção que tem-se ao ouvir “Essa Noite Bateu Com Um Sonho”, do Terno Rei (ouça aqui), é de que não há propriamente um espaço pra diversidade. Não entenda “diversidade” no sentindo de algo intrinsecamente bom. O clima calmo do disco (versos de guitarra, ecos sonoros) associado à mesma tranquilidade dos vocais influencia uma destituição de alternativas pra mergulhar no elemento maior que a banda abraça no álbum. Poucas mudanças de intenção são fundamentais pra estabilizar no ouvinte uma sensação bem específica (não que eu me refira à repetição exaustiva do drone, por exemplo. Até porque, com tamanha habilidade e profissionalismo no instrumental, “Essa Noite Bateu Com Um Sonho” obviamente não dialoga com este gênero).

O processo de criação de POLVÖ em “Small Pieces Of Cruel Mirrors” surge dos resquícios de vozes e um eco sempre presente ampliado em possibilidades pelas variações da suave guitarra inicial (e muito tecnicamente tocada, que seja dito). Se no início deste “ensaio” falou-se muito sobre narrativas, talvez “Small Pieces Of Cruel Mirrors” seja o menos tradicionalmente narrativo (ainda que os trabalhos do God Pussy e do Miazzo são mais radicais em termos estéticos), porque é justamente sobre reminiscências e a criação do pouco que restou.

“Todos Hipnotizados”, da dupla ARMENIA & Miazzo é (e isso é um achismo meu a julgar pelo nome) uma reinterpretação da música clássica do “Olho Seco”. E é algo que, em sua crueza, faz jus à banda seminal do punk rock brasileiro. Dilacerada em resquícios agressivos, a única peça ofende efusivamente padrões tradicionais. Miazzo já foi abordado neste ensaio, e na profusão escandalosa que é “Todos Hipnotizados” ele e ARMENIA (codinome de Leo Sabatto, veterano do noise equatoriano) cristalizam um barreira ruidosa impenetrável.

IV. Revelações

Pra revelar-se o que se é, é necessário um movimento intenso pra desnudar a teatralidade cotidiana. “[vers]”, de b-Aluria, é um grito autêntico que chega com um instrumental limítrofe pra evidenciar a radicalização desta experiência. O ouvinte é introduzido em uma psique que sabe bem que a única maneira de exteriorizar sua percepção distorcida das coisas (as vozes, as arranhadas instrumentais) é explorando de maneira bem agressiva o que o destinatário entende como música ou a construção musical. Autobiografia é algo passado. Pra se determinar o que é, torna-se fundamental um movimento; a tentativa de escapar do que é criativamente nulo (em sentido ordinário, mesmo). Capta-se certa “demência” no fluir das peças (é notória certas risadas enquanto se tecla numa máquina de escrever). É um revelar-se espelhado na experiência limite do outro. Se sexualmente todos órgãos respiram, é no encontro radical entre dois seres na direção do Fora que o próprio ser pode encarar alguma legitimidade.

O que é um tempo específico? Mais precisamente, o que são dez anos pra uma banda, Herod? O que isso quer dizer? O que o ouvinte pode tirar disso enquanto experiência, enquanto exploração de um tempo determinado em “The Best Of 2006-2016”? (baixe gratuitamente aqui) Talvez o que sirva pra banda como uma comemoração, é que na passagem dessas onze faixas que percebe-se o efeito do tempo em uma banda mas não precisamente o efeito do tempo que a banda durou. Isso porque o tempo é indeterminado. Uma santidade inviolável. A correspondência dos dez anos não é revelada ao ouvinte. Ao invés disso, a influência nítida dum tempo que é alheio às apreensões. A banda responde como sua maturidade musical, o ouvinte responde com a impressão nítida de uma rota perseguida. Se em “[vers]”, a biografia é escrita pela radicalização da experiência, o caminho menos experimental da Herod assinala outra forma de se autobiografar, emprestando tempo às composições. Se na própria apresentação do disco a banda não sabe precisar exatamente o “lá” em que quer chegar, fica ao ouvinte uma sensação nítida de transformação musical. A concretude do nome do álbum auxilia pra entender o fator-mor desta transformação.

“Q C”, de Quasicrystal, se mostra com uma inacessibilidade inicial. É uma sonoridade cibernética e também exaustiva. Talvez é o disco destes todos mencionados em que eu menos consiga dar um testemunho. É uma condição constantemente transformativa. Que se distancia do fácil espetáculo pra especular a ultracontemporaneidade não apenas em sentido estético-sonoro, mas oferecendo outra espécie de biografia aquém da nossa época, uma aceitação enorme de que tudo está acontecendo enquanto acontece.

“Pops”, do Emicaeli, surge recolhendo cenas contínuas e esparsas através de um instrumental “na-sua-cara”, debochando merecidamente de certas concentrações culturais ao qual nosso mundo dito “alternativo” insiste em se reduzir. É só pegar como com tantas disponibilidades as listas de fim de ano ainda são estranhamente homogêneas e criadas, com certeza, por certo identitarismo cibernético. “Pops” mira no próprio significado destituído. A realidade invade bruscamente os momentos de paz e mesmo nos instantes mais tranquilos há sempre algo cerceando o sujeito. “Emicaeli” bebe diretamente em Nova Iorque dos anos 80 e vê a nulidade contemporânea (o Nada em bom sentido) como alvo, talvez, impossível.

V. Pra onde estamos indo?

Tudo o que a música tem dito é uma coisa que o ouvinte sabia de alguma maneira. Faltava um guia pra levar o ouvinte a este ponto. “O que a fatalidade maneja, com potência o verbo envolve”, frase de apresentação incluída no Bandcamp do Insignificanto, mais precisamente no lançamento “Eva Mitocondrial”. Mas o que é fatalidade? Como evidenciar o fatalismo na música? Por isso é necessário a composição de um elemento negativo. O ouvinte deve sentir um impulso originário, algo paralelamente antes/além da manifestação do gênero enquanto delimitação sonora. Me parece que os caminhos mais radicais, como os artistas do selo Seminal Records estão conceitualmente (ainda que não intencionalmente) construindo. É algo muito feroz na disseminação da música enquanto experiência.

Não é possível estabelecer-se em bases rasas. Na errância não se apenas constrói um novo espaço, mas também se determina a ocupação de uma época. “Carrossel da Orgia: Vomitório Vaginal x God Pussy x Possuído Pela Girafa” (ouça aqui) ocupa histrionicamente um campo desajeitado, em que o subjetivo é aniquilado pelo mero e inescrupuloso escracho. Não se trata de ser “original” ou apenas a apropriação de elementos externos pra uma retaliação ruidosa; se há um objeto a ser ofendido, este mesmo objeto (a música) é que vai causar uma relação que pode lembrar o ouvinte de visitar cantos esquecidos.

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