“Tanto” (ou “tanto.”, como é grafado) é o sétimo disco de Felipe Neiva, o Surpreendente de Niterói. O trabalho chega um ano depois de “Filho”, o trabalho de “micropolítica” do artista (leia e ouça aqui).
O Surpreendente de Niterói não falha, surpreende. Parece não haver um disco igual ao outro – e pra artistas como ele, nem é pra ter, deixemos as previsibilidades pros que almejam as paradas de sucesso.
Entretanto, eis que “Tanto” é surpreendente até nisso: ele é um disco que soa como “de AM”. Não sei se nos grandes centros urbanos as pessoas ainda escutam com tanta frequência rádios AM, mas por muito tempo foi ali que morava o fomento da música popular brasileira. Não a música popular que viaja pra Europa, mas a música popular que toca nos radinhos de pilha do povo.
“Tanto” é surpreendente porque tem uma sonoridade “moderna” (o que quer que isso queira dizer) encorpando músicas pra dançar em muquifos, em calçadas distantes, lavando a louça, fumando um cigarro na laje olhando o passado.
Ninguém duvida da capacidade de Felipe Neiva de compor e retorcer a lógica, mas em “Tanto”, quando começa “Tilele”, “Amor-Vício”, e a “roqueira” “mEu”, o ouvinte se percebe diante de alguém poderia ter composto pra Nelson Ned, pra Frank Aguiar, pra Amado Batista, com letras, sintetizadores e arranjos deliciosamente vagando entre a três décadas de música popular e não necessariamente “jovem”.
“Fora!” é, sim, “jovem”, mas dos anos 1980. Mas o disco não se segura assim até o final. Há uma “transição” a partir da sedutoramente assassina “Mata Atlântica”, se encaminhando pro tal psicodelismo do novo século.
Curiosa visão da obra, porque na descrição oficial da imprensa, Neiva explica sua visão, que é completamente outra abordagem – e não tem nada de nostálgica ou de olhar pro passado.
“Dentro do projeto, como um todo, a intenção é discutir de que forma a violência perpassa inclusive as nossas relações de maior intimidade. ‘Guerras Íntimas’ é sobre lutas não-necessariamente explícitas e físicas. É talvez sobre o lado feminino de uma luta, pensando nas polaridades Yin-Yang. Dentro disso, o lado ‘Yin’, mais subjetivo, feminino e de ‘sombra’ é o ‘filho.’. E o lado Yang, ‘luz’ que mergulha pra fora e em direção ao Sol é o ‘tanto.'”, conta Neiva, explicando a complementação deste disco e do anterior.
Mais surpreendente ainda é descobrir que o trabalho tem muitas participações que ajudam a moldar o resultado final: o clarinetista norte-americano Mike Watson, a pianista catalã Bru Ferri, o percussionista e ativista zimbabweano Dwayne Kapula, além de Augusto Feres, Marcos Thanus, Marcelo Callado, Mari Romano, PH Rocha e Daniel Duarte.
“Após anos criando em casa ou em formatos reduzidos, esse projeto coletivo em momento de solidão mostra novas possibilidades pro trabalho do artista que, durante a gravação do disco, também trocou experiências nos palcos com artistas como Negro Leo, Ana Frango Elétrico e Thiago Nassif – todos, de alguma forma, parte da inspiração que levou a ‘tanto.'”, diz o informe.
“É um projeto que eu nunca tive condições plenas de dar conta antes. É um trabalho com muitas escolhas coletivas. Tanto em termos de timbre quanto de arranjo, quem tocou no álbum teve uma influência muito grande na concepção. ‘tanto.’ é o lado que se volta pro outro e tenta falar. Existe um ‘tanto’ pra ser dito pras pessoas com quem nos relacionamos de forma mais íntima e é sobre isso que eu tento falar com as 10 músicas do álbum”, explica Neiva.
O Surpreendente de Niterói fez o disco mais interessante de sua carreira – e talvez eu diga isso de todo novo trabalho dele; mas, veja, se fosse diferente, ele não seria surpreendente.
Se você entendeu o disco de forma distinta do que o artista tentou entregar – e explica aqui – é porque, na verdade, ele cumpriu o seu melhor papel, de surpreender o ouvinte com uma música rica em experiências e sonoridades.
Todas as composições e arranjos finais são do próprio Felipe Neiva.
Todas as músicas gravadas no Estúdio Terra em 2018. Arranjos adicionais foram gravados em Niterói (RJ), Rio de Janeiro (RJ), São José do Vale do Rio Preto (RJ) e São Paulo (SP,) entre 2017 e 2020.
São muitos os engenheiros de som listados nos créditos: Alexandre Gwaz, Augusto Feres, Bárbara Guanaes, Daniel Duarte, Felipe Neiva, Gabriel Edé, Marcos Thanus e Pedro Campos.
A produção é de Neiva (“com soma de Daniel Duarte e Antônio Sobral”, na Executiva, e “soma de Daniel Duarte”, na Musical).
Felipe Neiva e Daniel Duarte mixaram e masterizaram o trabalho.
O lançamento é de 3 de novembro de 2020, pelas mãos da Cavaca Records.
01. Desire
02. Tilele
03. Amor-Vício (clique aqui pra ver o vídeo)
04. mEu
05. FORA!
06. Nós
07. Mata Atlântica
08. Não Dá Mais
09. Guerras Íntimas
10. Moléstia-Vida