São cinco músicas em “Disco Demência”, o novo trabalho da Hierofante Púrpura, a banda mais chapadamente consciente do Brasil, lançado em 28 de outubro de 2016, via Balaclava Records. A banda não lançava nada desde “Boas Bestas”, em 2015.
O título – e a ideia – tem ligação direta com o “Filme Demência” de Carlos Reichenbach, cineasta gaúcho morto em 2012. A obra é baseada no “Fausto”, de Goethe, o cientista que faz pacto com o diabo. A banda chama “Disco Demência” de trilha-sonora póstuma pro filme.
Musicalmente, faz todo sentido. O piano transloucado de Danilo Sevali e a guitarra irriquieta de Gabriel Lima dão o tom baratinado, sem rumo, sem foco. Mas a poesia embutida no disco tem outra direção. Ouvindo a debochada e provocativa “Cachorrada”, com seus sete minutos, tem-se a noção de que a Hierofante Púrpura enxerga demência numa lógica que os outros vêem como “normalidade”: “Minha mãe me falou: que essa MERDA de banda não vai me render um só puto! Enquanto ela praguejava, fui me tornar vagabundo. Minha mãe perguntou: se esse tal rock indie, são um bando de CÃO SEM DONO! Pose de gente letrada, seremos a banda do ano?”.
É um disco mais sobre “deslocamento”, desconforto com o espaço e o tempo. “Baratas (Elas Continuam As Mesmas)”, com participação especial do Patife Band Paulo Barnabé, mostra um narrador passivo, mas incomodado com o entorno: “Não sou bem vindo, e nem mesmo finjo ser alguém que não posso ser. Devolvo o troco e desfiro o soco no olho que julga ter poder sobre mim. Mas você segue cuspindo na minha cara. Mas você segue curtindo com a minha cara”.
“Acalenta Lua” tem uma poesia simplíssima, mas que exala insatisfação e inquietação: “É uma Lua, é uma lua… Que eu nunca senti, que eu nunca me permiti. Venha cá, se achegue lá”. E só. É o suficiente.
Parece discurso de hippie moderno (se é que existe tal coisa), deslocado do tempo e talvez importante apenas como demonstração histórica. Mas é sempre na loucura que se vê a saída, diante da passividade desumanizadora. É preciso que alguém dê uma chacoalhada nos ideais de “normalidade” pra que a sociedade dê um passo em qualquer outra direção e não fique estagnada.
Não, não vai ser o “Disco Demência” a força motriz de mudanças radicais na nossa sociedade que desde 2013 vem dando passos largos em direção ao atraso. Uma balada-em-duas-partes como “Colapso Colorido” tem mais a ver com o esse momento: “Olha, veja bem, quem sou eu? Eu não sou ninguém… Sou alguém”. A gente pode fazer a diferença pra gente mesmo e mesmo assim não ser percebido. É uma mudança que não importa a ninguém, daquelas que a gente olha de longe sem nos afetar, admira o esforço alheio, a conquista alheia, e segue a vida numa boa, inerte, sem nos afetar.
A demência é mágica nesse sentido: a gente pode estar cravado numa normalidade irreal, achando que tá tudo ok, por falta de compreensão, daí vem uns doidos, com uns aditivos na cabeça, uns instrumentos, umas notas musicais, umas distorções de leve e tudo pode clarear de repente, nem que brevemente, pra quando o silêncio do fim da música chegar, a gente voltar ao torpor.
“Disco Demência” tem quarenta minutos de tentativas de tirar o ouvinte da rotina. São músicas que olham lá pros anos sessenta e setena, sim, com aquela aura de saudosismo, mas cujo discurso é bem atual.
Sem se curvar ao que é “acessível”, com temas que vão dos seis aos dez minutos de duração, sem refrão, sem estrofes que se repetem, sem melodias assobiáveis, a Hierofante Púrpura cunhou sua demência de maneira a atingir um alvo bem definido.
Bom, é o ouvinte que vai dizer se a banda atingiu ou não. A percepção é de cada um, por certo.
O trabalho foi gravado ao vivo, em plataforma analógica (16 track 1inchTape), no estúdio da banda em Mogi das Cruzes, o Mestre Felino, quase um ano atrás, em Dezembro de 2015. A produção é do grupo e de Jonas Morbach (que também cuidou da mixagem e da masterização).
Em “Disco Demência”, a Hierofante Púrpura tem um novo baterista, Rodrigo Silva. Os outros três integrantes seguem na mesma loucura: Danilo Sevali (voz, teclas e guitarra), Gabriel Lima (guitarra e voz) e Helena Duarte (baixo e voz). Tente você também entrar em sintonia.
1. Cachorrada (clique aqui pra ver o vídeo)
2. Acalenta Lua
3. Baratas (Elas Continuam As Mesmas)
4. Colapso Colorido
5. O Óxido Da Rotina