“Rente” é o terceiro disco de Jair Naves. Lançado nesse dia 3 de maio de 2019, chega quatro anos depois de “Trovões A Me Atingir”, de 2015 (ouça aqui na íntegra), e do EP “Atirado Ao Mar”, do mesmo ano (ouça aqui).
As doze canções elencadas aqui foram escritas por Jair (exceto “Mácula”, com Renato Ribeiro, Rob Ashtoffen e Lucas Melo; “Tudo Grita” e “Lampejos De Lucidez”, com Renato Ribeiro; e “O.H.R.E.U.C.S.”, com Rob Ashtoffen e Lucas Melo), com produção dele mesmo. Foram gravadas e mixadas por Zeca Leme, no BTG Studio, em São Paulo. A masterização é assinada por Fernando Sanches.
A banda que acompanha Naves é formada por Renato Ribeiro (guitarra, violão, vibrafone e bandolim), Rob Ashtoffen (baixo, sintetizadores e guitarra), Lucas Melo (bateria), Raphael Evangelista (violoncelo), Thiago Pereira (baixo acústico), Júlio Dreads (percussão) e Felipe Faraco (piano e sintetizadores).
Apresentações feitas, vale destacar que “Rente” tem força na sua poesia, nas letras. Esse parece ser um daqueles discos que ficam pra história como tantos da música rock-pop brasileira que a gente cita trechos de letras pra argumentar qualquer coisa. Fazemos assim com Legião Urbana, como Cazuza, com Titãs, com Charlie Brown, com Nação Zumbi (a lista segue interminável, sempre com bandas e discos que significaram algo).
Então, quer dizer que “Rente” já nasceu clássico? É provável, é provável. Musicalmente, é preciso dar tempo ao tempo. Liricamente, é divertido sair pinçando trechos que nos servem pra traduzir sentimentos. Não são poucos e eles vão crescendo conforme o ouvinte se aproxima de cada canção.
“Veemente” e “Deus Não Compactua”, as duas primeiras trabalhadas pra promover o álbum, dão uma confortável sensação de que são velhas amigas (Jair Naves tem a habilidade de criar músicas de fácil assimilação), e são delas que o ouvinte vai pinçar suas primeiras frases contundentes: “Nada é mais humano que a disputa por poder / Nada é mais desumano que a disputa por poder” ou “Qualquer busca por empatia a essa altura, é ingenuidade / eu me defendo esperando o pior / Minha terra é uma bomba a ponto de explodir, / minha fé é uma bomba a ponto de explodir”.
Desde 2013, quando a polarização político-ideológica tomou ares de guerra-fria – o Brasil sempre atrasado recuperou uma disputa que o mundo enterrou em 1989, com a queda do Muro de Berlim -, a coisa desandou. Sim, coexistir, desde então, se dá “com ares de guerra”. A gente “eleva o tom, ganha no grito” e se mostra “igual no que tem de pior”.
Jair, em conversa com o Floga-se, diz que acredita que “Rente” seja “um desabafo, antes de qualquer coisa, mas a consequência de ser um posicionamento acaba sendo inevitável. Pouco depois dos eventos (…) de 2013, o noticiário político sempre me deixou com uma sensação do tipo ‘não é possível que isso de fato vá acontecer’. E, evidentemente, o rumo que as coisas tomaram fala por si. Igualmente assustador foi notar o apoio popular à uma guinada pro autoritarismo, a tensão social crescente, uma espécie de retrocesso intelectual e vilanização de artistas, perseguição e linchamento virtual, uma espécie de licença pra praticar o que existe de pior na natureza humana que veio com a escolha dos novos líderes políticos”.
“O homem reprimido é um câncer social”, o artista explode em “O.H.R.E.U.C.S.”, uma espécie de “Caos” (do Ratos De Porão) de Jair Naves. É uma sentença que tanto pode exaltar o ser humano engasgado, querendo extravasar, quanto o homem reprimido e cheio de preconceitos impostos por uma sociedade distorcidamente construída. Um tanto uma síntese da confusão que vivemos. “Realmente é uma frase que permite leituras diferentes”, segue Jair. “Gosto de pensar nela nesse contexto de extremismo religioso como fachada, do uso do nome de Deus a torto e direito com intenções nada espirituais ou religiosas, de como os tais ‘cidadãos de bem’ tem sido responsáveis por coisas horríveis em todo o mundo, há tanto tempo. Também gosto da leitura de que é difícil ignorar que o homem reprimido, mesmo sendo o causador de tantos males, também é produto e vítima do seu meio, dificilmente conseguindo se libertar do que lhe foi imposto”.
“Tudo Grita” traz versos que resumem nosso Brasil 2019: “Tudo vibra em discordância e negação / Tudo grita, histeria, contagiosa afetação”. Em dez, quinze, vinte anos, olharemos pra trás e veremos em “Rente” um ato político dessa época? “Sempre me incomodou o rótulo de ‘político’ pra um disco que tem uma implicação de certa frieza, de distanciamento emocional com o que está sendo dito”, diz Naves. “Pra mim, ‘Rente’ não poderia ser mais emocional do que é. Embora fale muito de questões sociais e políticas, são coisas que me afetam diretamente, que vão contra meus princípios básicos, temas e acontecimentos em que eu pensei obsessivamente durante esses últimos anos. Não é um tratado teórico, um posicionamento premeditado pra soar moralmente superior ou qualquer coisa do tipo. É uma reação que vai muito mais no âmbito existencial da coisa toda, de ver onde eu me encaixo nisso tudo, onde isso vai nos levar”.
Servirá como um retrato de 2013-2019 (período de estranhamentos que obviamente ainda não acabou e não se vê um fim próximo). “Ainda mais assustador do que esse novo ciclo político é o fato de que agora se expõe com certo orgulho os piores preconceitos e noções de mundo. Não é por acaso que a escolha de líder do país foi essa. É a representação de um discurso que até então era tido como repreensível, inaceitável, mas que se mantinha muito vivo e perceptível. Uma vez que alguém resolveu expressar tudo isso de peito estufado, parte grande da sociedade se viu representada”, reflete.
Já em “Hino Dos Estados Unidos Como Toque Do Seu Celular” (que título espetacular, convenhamos!), Jair declama: “Charlatanismo institucionalizado / justificando o injustificável, / terror relativizado, / que se mudem os incomodados / Ainda não estamos quites / Pregando apenas aos já convertidos, / protesto seguro, de aplauso garantido / herói de um nicho, / de um recém-declarado grupo de risco”.
Uma crítica certeira aos admiradores do mandatário eleito, mas que também serve pros nossos umbigos. Pregar pra convertidos é o que mais fazemos, vivendo numa bolha. “(Essa frase) veio num ponto do processo de composição em que eu senti que esse disco não poderia ser apenas um exercício de apontar o dedo aos outros durante quarenta minutos. É algo que eu tentei também em outros versos, mas que talvez tenha ficado mais claro aí. Estamos mesmo em trincheiras, ou bolhas, ou qualquer que seja a denominação mais adequada. A comunicação com o outro lado está cada vez mais difícil. No papel em que eu me coloquei, é necessário estabelecer diálogo, mesmo quando não há disposição pra tanto. É o desafio, o objetivo mais importante”.
Ele segue: “um dos motivos que me fizeram escolher esse título para o disco, e mesmo a arte da capa, foi dar a ideia de uma proximidade muito grande e até desconfortável com o que você está tentando entender, analisar ou criticar. Como se fosse necessário um distanciamento maior, que simplesmente não é possível. Até mesmo como se você estivesse tão próximo ao problema que você começa a se perguntar se você também não é parte dele, de alguma forma”.
Estamos próximos, muito próximos do “oposto”, por isso precisamos viver e conviver com ele. Estamos rentes a quem nos declarou como inimigos, mas é uma posição que também declaramos. Só que não podemos viver eternamente nessa guerra, nessa tensão.
Por isso, a escolha da sonoridade levou o disco a ser mais “calmo” e “melancólico” do que “pesado”, “acelerado”, “punk”, “urgente”. “Também acho que, pro discurso ser efetivo”, ele segue, falando das escolhas sonoras de “Rente”, “sair um pouco desse gueto musical em que eu atuo e talvez criar uma conexão mínima com pessoas que não tem a menor familiaridade com esse tipo de música, é importante fazer escolhas estéticas distintas. Em primeiro lugar, porque seria previsível um disco musicalmente ‘pesado’ pra acompanhar essas letras. Já foi feito milhões de vezes antes. Não que eu seja um guardião da originalidade, longe disso, só acho que soaria mais redundante ainda. Em segundo lugar, volto pra aquele tópico anterior, de falar pra além de quem já está predisposto a te ouvir. Não num sentido mercadológico da coisa, ‘vamos ampliar nosso público etc’. Mas tenho orgulho dessas letras e ficaria feliz em ver alguém de fora do nosso círculo dando atenção a elas. Com um acompanhamento que as deixe mais nítidas e compreensíveis, as chances disso acontecer são maiores”.
“Achei que uma variação de sonoridade seria fundamental pra que o resultado final não ficasse maçante. Tentei variar o estilo das letras o máximo possível, mas acho que isso se deu mais no jeito que as músicas soam mesmo. Então, você tem esses momentos bem dissonantes e quebrados como ‘O.H.R.E.U.C.S.’, outros mais urgentes como ‘Deus Não Compactua’, ao lado dos silêncios de ‘Gira’ e da saudade e melancolia de ‘Escalas'”, completa.
Você pode ouvir “Rente” na íntegra aqui:
01. Veemente
02. Deus Não Compactua (clique aqui pra ver o vídeo)
03. Alívio Cômico / Palanque
04. Mácula
05. Gira (clique aqui pra ver o vídeo)
06. Lampejos De Lucidez
07. Hino Dos Estados Unidos Como Toque Do Seu Celular
08. Rente
09. Escalas
10. O.H.R.E.U.C.S.
11. Tudo Grita
12. Sonhos Se Formam Sem O Meu Consentimento
dias atrás estava ouvindo o Araguari. bom demais saber que o Jair continua produzindo.
Amei seu blog 🙂 Parabéns!!!