Esse foi meu quinto (ou sexto, perdi a conta) show do Kraftwerk. Superlativei a informação pra mostrar que, sim, não é possível perder uma apresentação dos alemães. Esbarrou com um show deles no local onde você estiver, tem que ver. É arte e não pelo sentido simplório da palavra – do tipo “música é arte”. A relação que o quarteto tem com essa palavra é a mesma que museus ou galerias de arte tem que os seus apresentados. E há o perfeccionismo e, ainda, nunca é demais lembrar, a caricatura e piada (ou graça) da coisa toda.
O Kraftwerk não é só “os Beatles da música eletrônica” ou “o pai do eletrônico”. A banda não está no praticamente inatingível patamar que qualquer artista gostaria de estar, ela é o patamar. A ligação de visual com o sonoro é perfeito o suficiente para cada show parecer por sí só uma galeria de arte. É mutável e ainda assim inigualável.
Foi com essa projeção na cabeça que me sujeitei a pagar um terço de um salário mínimo (meia-entrada, meia-entrada, porque a inteira custava dois terços mais um rim e uma vergonha alheia de exibir tamanha gastança em um país com trinta milhões de famintos).
O parque do Ibirapuera – privatizado pela prefeitura e, com isso, palco ideal pra essa soberba patrocinada por um banco privado, metido a besta pra pessoas idem – estava aberto, com os frequentadores habituais, graças à bela tarde de sol daquele sábado. Enquanto os bem-nascidos portadores de ingressos de quase mil reais chegavam, famílias que provavelmente poderiam viver com essa grana por um mês saíam.
Em um país assim, com tanta desigualdade, é possível enxergar a ofensa que é realizar um festival desses em um espaço outrora público, mas privatizado (pra provável alegria dos grandes correntistas do banco), com grades e seguranças a separar aqueles que não podem abrir uma conta no tal banco e nem apreciar um espetáculo como o do Kraftwerk e de tantos outros que formavam uma escalação muito boa, embora pra poucos, como os relatos depois fizeram saber (The War On Drugs e Dry Cleaning pra parquíssimos gatos pingados – ops, a redundância! – e em horários imorais pra quem precisa trabalhar e contar dinheiro pra pagar tais ingressos).
Em um país assim, perceber o próprio privilégio pode fazer desistir e ninguém quer isso. É engolir seco, fingir que não é consigo e ir em frente – nisso, infelizmente, o Kraftwerk no Brasil é diferente, afinal há, ao menos, dias de museus gratuitos.
O “ir em frente” tem suas recompensas. Vale reafirmar: que baita escalação teve o rico festival. Bandas que tocariam facilmente em qualquer clubinho e, com ingressos mais em conta, talvez conseguissem encher a plateia, tal o que representam em termos de “renovação” (desculpe-me pelo termo), foi a grande virtude do C6Fest.
Já o Kraftwerk tem uma outra virtude. Embora tenha cara de naftalina, cheire a naftalina e tenha duração de naftalina, está longe de ser um espetáculo calcado apenas na própria história. O Kraftwerk pode passar cinquenta anos fazendo o mesmo show e o mesmo show vai ser soberbo. Há uma boa forma de atualidade que insiste em não se desgrudar do Kraftwerk, a estética retrô que seus belos vídeos que acompanham as músicas oferecem. São ao mesmo tempo simples e elaborados. Ao mesmo tempo antigos e renovados. Tal e qual a música: simples, elaborada, dançante, engraçada, moderna, estimulante, provocativa. O conjunto, sob medida, cria a sensação de uma exposição de arte ampla e hipnotizante.
Mais um ponto pra organização do festival foi a escolha de transformar a estrutura do Auditório do Ibirapuera em tela de projeção. “A Arte Concreta literal”, alguém sussurrou ao meu lado. A arte que, além disso, faz dançar (ou ao menos balançar o corpo) e faz sorrir, mesmo que involuntariamente.
Da banda original, só Ralf Hünter, mas as ideias estão todas ali: as roupas-robô coloridas, os suportes coloridos. A estética do robô-triste, quase sem expressão. Os fuscas e Mercedes de “Autobahn”, os idiomas que se aproximam em “Numbers”, os autômatos engravatados de “The Robots”, as imagens em preto em branco de “The Model” e “Tour De France”, o trem moderno e solitário de “Trans Europe Express”, as batidas modernas e urbanas de “Metal On Metal”, as formas geométricas de “The Man-Machine”, o computador vintage de “Computer Love”, e os robôs-esqueletos de “Boing Boom Tschak”. E há “atualidades”, como a São Paulo vista do espaço em “Spacelab”.
Eis um espetáculo que não poderia estar confinado entre cercas, seguranças e quase metade de um salário mínimo. Deveria ser acessível e pra todos. Todos deveriam ter esse privilégio. Mas nos tempos da arte e dos parques privatizados, é o que temos.
01. Numbers / Computer World
02. Spacelab
03. The Man-Machine
04. Autobahn
05. Computer Love
06. The Model
07. Tour de France 1983 / Prologue / Tour de France Étape 1 / Chrono / Tour de France Étape 2
08. Trans Europe Express / Metal On Metal / Abzug
09. The Robots
10. Planet Of Visions
11. Boing Boom Tschak / Music Non Stop